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repórter
21 octobre 2006

País real


Com as obras do Metro, a ligação ferroviária entre o Porto e a Póvoa do Varzim está interrompida. O percurso faz-se agora de camioneta, o oficialmente chamado Transporte Alternativo ao Modo Comboio.

No feriado do dia de Corpo de Deus, quinta-feira 30 de Maio, cabia-me o agradável compromisso de debandar até perto de Vila do Conde, onde me esperava uma opípera merenda para festejar a comunhão do meu pequeno amigo Francisco — um privilégio que só abrange quem conhece.

Às três e pouco da tarde, já eu estava de plantão na Sidónio Pais, à espera da camioneta. Que só saía da Praça da República por volta das quatro, informou-me uma senhora cultíssima em horários, afanada a fazer horas e tricô, e só com olhos para o 45. Sobre os apeadeiros da minha viagem e os custos, nada perguntei, para não expor a minha ignorância. Ademais, no bolso levava uma nota de 20 euros, quantia que, calculei, me punha a coberto de qualquer sobressalto.

Às quatro e pouco, surgiu a ansiada camioneta, da Gondomarense no caso. Entrei e, por previdência, inquiri se parava em Árvore, o meu destino. Que não sabia onde isso ficava, disse-me o motorista. E foi com o esclarecimento de um passageiro que me decidi pelo embarque, na certeza de haver uma paragem bem perto de Árvore, no lugar de Areia.

Pedi o bilhete, do bolso tirei os meus aquietantes 20 euros.

— Não tenho troco!

— ?

— Não tenho troco já disse! — explodiu o condutor, por detrás dos óculos de sol. E logo: — Ponha-se lá fora!

Emudeci.

— Lá fora! — E, judicioso: — Vocês têm de aprender... Vocês têm de aprender a trazer dinheiro trocado! Fora!

— Isso é que era bom — foi o que me ocorreu. — Não saio!

— Sai! Sai!

— Isso é que não saio!

— Olhe que eu chamo a polícia!

— Faça favor.

E logo, por telemóvel, polícia em rede — o piquete, informou em off — era participada a ocorrência: carreira retida no sitio tal... passageiro que se recusa a sair... Terminada a ligação, a maior das ameaças: — Vêm aí!

E ficou-se à espera. A porta, mantida aberta atrás de mim, lembrava-me o estatuto delinquente e o meu lugar: a rua, a prisão.

Temendo que o problema se eternizasse, alguns passageiros começaram a desesperar: — Resolvam lá isso, tenho mais que fazer!

Aproveitei para uma incursão ao bom-senso do condutor: — O procedimento do senhor é grave, muito grave. Para mais, diante de todas estas testemunhas...

Olhei para a longa fiada de passageiros a espreitarem por cima dos bancos, dos dois lados do corredor. Homens, mulheres, todos os olhos fugiram de mim. Um dos da frente, percebendo que o seu destino estava irremediavelmente ligado ao meu, foi ao bolso e acenou-me com duas notas de 10. A salvação! Acto contínuo, estendi o dinheiro ao motorista.

— Não tenho troco, já disse... Vocês têm de aprender!

Face à irredutibilidade, o passageiro que partiu em 10, partiu em 5. Montante reduzido à quarta parte, o motorista acedeu enfim vender-me o bilhete. E arrancámos.

Percorri todo o corredor, em busca de um lugar vago. Nesse trajecto, tentei descobrir um olhar solidário, um sorriso cúmplice. Ninguém me viu

 

AB

 In Notícias Magazine n.º 531, 28 de Jul 2002

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