País real
Com as obras do Metro, a ligação ferroviária entre
o Porto e a Póvoa do Varzim está interrompida. O percurso faz-se agora de
camioneta, o oficialmente chamado Transporte Alternativo ao Modo Comboio.
No feriado do dia de Corpo de Deus, quinta-feira 30
de Maio, cabia-me o agradável compromisso de debandar até perto de Vila do
Conde, onde me esperava uma opípera merenda para festejar a comunhão do meu
pequeno amigo Francisco — um privilégio que só abrange quem conhece.
Às três e pouco da tarde, já eu estava de plantão
na Sidónio Pais, à espera da camioneta. Que só saía da Praça da República por
volta das quatro, informou-me uma senhora cultíssima em horários, afanada a
fazer horas e tricô, e só com olhos para o 45. Sobre os apeadeiros da minha
viagem e os custos, nada perguntei, para não expor a minha ignorância. Ademais,
no bolso levava uma nota de 20 euros, quantia que, calculei, me punha a coberto
de qualquer sobressalto.
Às quatro e pouco, surgiu a ansiada camioneta, da
Gondomarense no caso. Entrei e, por previdência, inquiri se parava em Árvore, o
meu destino. Que não sabia onde isso ficava, disse-me o motorista. E foi com o
esclarecimento de um passageiro que me decidi pelo embarque, na certeza de
haver uma paragem bem perto de Árvore, no lugar de Areia.
Pedi o bilhete, do bolso tirei os meus aquietantes
20 euros.
— Não tenho troco!
— ?
— Não tenho troco já disse! — explodiu o condutor,
por detrás dos óculos de sol. E logo: — Ponha-se lá fora!
Emudeci.
— Lá fora! — E, judicioso: — Vocês têm de
aprender... Vocês têm de aprender a trazer dinheiro trocado! Fora!
— Isso é que era bom — foi o que me ocorreu. — Não
saio!
— Sai! Sai!
— Isso é que não saio!
— Olhe que eu chamo a polícia!
— Faça favor.
E logo, por telemóvel, polícia em rede — o piquete,
informou em off — era participada a
ocorrência: carreira retida no sitio tal... passageiro que se recusa a sair...
Terminada a ligação, a maior das ameaças: — Vêm aí!
E ficou-se à espera. A porta, mantida aberta atrás
de mim, lembrava-me o estatuto delinquente e o meu lugar: a rua, a prisão.
Temendo que o problema se eternizasse, alguns
passageiros começaram a desesperar: — Resolvam lá isso, tenho mais que fazer!
Aproveitei para uma incursão ao bom-senso do
condutor: — O procedimento do senhor é grave, muito grave. Para mais, diante de
todas estas testemunhas...
Olhei para a longa fiada de passageiros a
espreitarem por cima dos bancos, dos dois lados do corredor. Homens, mulheres,
todos os olhos fugiram de mim. Um dos da frente, percebendo que o seu destino
estava irremediavelmente ligado ao meu, foi ao bolso e acenou-me com duas notas
de 10. A salvação! Acto contínuo, estendi o dinheiro ao motorista.
— Não tenho troco, já disse... Vocês têm de aprender!
Face à irredutibilidade, o passageiro que partiu em
10, partiu em 5. Montante reduzido à quarta parte, o motorista acedeu enfim
vender-me o bilhete. E arrancámos.
Percorri todo o corredor, em busca de um lugar
vago. Nesse trajecto, tentei descobrir um olhar solidário, um sorriso cúmplice.
Ninguém me viu
AB
In
Notícias Magazine n.º 531, 28 de Jul 2002