Tudo começa
com um pequeno sobressalto no passeio: uma pedrita que salta. Saltando,
se abriu uma ausência, a breve falha dum dente, no pavimento. O conflito
entre os pés dos transeuntes e a covinha cria novos sobressaltos, saltitos,
maiores ausências.
Quando o
passeio se desdentou de todo, o chão subjacente breve se desfez num
oco, se abriu numa ameaça, goela voraz de pernas partidas, mãos, braços.
Num necrotério.
Só numa
manhã, conta-se, foi engolida uma jovem, o carrinho do bebé, pereceu
o cobrador de custas judiciais. A dona Arminda e o senhor Serafim, respeitadíssimos,
distraídos a conversar, animaram os noticiários. O senhor Estêvão
da drogaria, a saudosa Leonor do café... E outros, tantos que seria
fastidioso enumerar.
A abnegação
dos bombeiros, as infrutíferas escavações, as acções de busca e
salvamento nas profundezas, com cães-polícia vindos expressamente
da Austrália, mais escancararam o apetite, as maxilas da devoração.
E quando o oco sinistro, a pança, enfim abarrotava, já a cidade definhava
em gente, em movimento.
Chorado o
último residente, as autoridades decidiram pôr pedra sobre o assunto.
Com carácter de urgência, foram descarregados oportunos pedregulhos,
camiões de cascalho e brita. Tudo bem compactado, recobriram o local
de má memória com asfalto.
Por extenso.
Em tempo
recorde, como sublinharam os jornais, foi ali inaugurada uma moderna
via rápida, uma nova variante.
Augusto Baptista