Um homem do TEP
Trabalhou com António Pedro, com todos os nomes,
nas últimas décadas do TEP. Bilheteiro, ponto, contra-regra, guardião de
memórias, Vidal Valente é rosto discreto de uma companhia que insiste em
experimentar teatro.
Texto de Augusto Baptista
«Eram dois. Um para o texto, outro para ver.
Tocou-me algumas vezes abrir a cortina: Vossas
Excelências dão licença de iniciarmos o ensaio? Na sala já estava tudo
preparado. O que lia o texto precisava de um apoio, uma mesa com luz. O outro
só via os movimentos».
Certo e sabido, a rondar a estreia, havia ensaio de
censura. Momento penoso imposto pela ditadura que Vidal Valente, como ponto e
depois contra-regra do Teatro Experimental do Porto, TEP, durante anos
acompanhou: «No ensaio do Rinoceronte,
uma peça de Ionesco, havia um manguito do João Guedes para o Vasco de Lima
Couto. O visual, o censor visual, disse: Esse
gesto é muito obsceno. E cortaram».
Para além dos gestos, sob a alçada visual recaía
ainda o comprimento das saias, o decote das actrizes. E os movimentos: «Houve
uma cena n'A Casa de Bernarda Alba,
representada em 1972, em que o encenador, o Angel Facio, pôs a intenção de duas
irmãs se abraçarem e rebolarem no chão.
Isto é muito obsceno, não queremos cenas destas!».
O censor visual, vindo de Lisboa, mudava com
frequência; o outro era do Porto e quase sempre o mesmo: «Este só cortava
texto. Às vezes mandavam parar o ensaio e trocavam impressões. Tudo o que não
se enquadrasse na moral deles, era riscado. Nem merda se podia dizer. E qualquer
coisa que pudesse lembrar o Salazar, cortavam».
Os cortes eram um suplício para os actores, já
engrenados nas marcações, nas falas. Mas tinham de ser cumpridos à risca: «Com A Casa de Bernarda Alba veio uma carta a
dizer que não estavam a ser respeitados os cortes e a ameaçar proibir o
espectáculo».
Quarenta e três anos de ligação ao TEP, fazem de
José Maria Vidal Valente um conhecedor privilegiado da história da casa e das
suas vicissitudes, desde as primitivas instalações numa antiga lavandaria da
Travessa de Passos Manuel à actual sede em Vila Nova de Gaia, onde antes
habitava a Junta de Freguesia de Mafamude. Deste atribulado trajecto guarda
muitas recordações, memórias, referências. Mas pouco revela: «Sou como os
médicos e os padres, tenho uma ética».
Homem de princípios, feitio reservado, Vidal
Valente — nascido no Porto, em 1931 — cedo pisou o tablado. «A primeira vez que
pontei foi aqui em Gaia, num espectáculo da minha avó, na Tuna de Santa
Marinha. Tinha à volta de 15 anos». Mas a sua ligação ao Teatro vem de longe, é
umbilical. A mãe, Nita Mercedes, era actriz; tal como a avó, Ema Orlandio. O
pai, Lopes Valente, desde jovem ligado à cena, integrou o TEP, como ponto e
como secretário da companhia.
Curioso é o facto de Vidal Valente ter aqui rendido
o pai, nas funções de ponto: «A minha estreia coincidiu com a do João Guedes,
como encenador, e a do Jorge Corte Real, como contra-regra. Foi em 1960, na
peça O tio Vânia, de Tchekov».
Desde então, apaixonou-se pela actividade de ponto,
que desempenhou com mestria. Diz o presidente do TEP, Júlio Gago: «Em Portugal,
foi o António Pedro que acabou com a caixa do ponto no palco. No teatro e em
televisão, o Valente trabalhava por mímica, transformando uma técnica de apoio
numa área criativa».
De ponto, haveria de transitar para funções de
contra-regra: «É quem cuida da disciplina em palco. E trata dos adereços,
conforme a informação do encenador e do cenógrafo. Mas hoje é o produtor que
trata disto». À sua guarda, durante anos, esteve ainda o património da companhia:
roupas, quadros, documentos.
E cartazes. Um deles guarda uma história de
resistência. E de coragem. «Eram dois pides à paisana e um polícia fardado.
Chegaram ao teatro e foram ter com o meu pai: Queremos os cartazes todos! Fui lá atrás, afanei cinco ou seis,
subi as escadinhas para a teia... Daí a pouco, já estava o meu pai Zé, tudo o que houver aí de cartazes dá a
estes senhores. E eles levaram. Não
fica cá nada?! Nada!».
Os únicos exemplares que sobreviveram à perseguição
política foram esses, os que Vidal Valente escondeu. Todos os outros foram
apreendidos, arrancados das paredes da cidade. «No cartaz, o Zé Rodrigues pôs
uma mulher com um coração de Jesus a tapar o sexo. A Rádio Renascença da altura
e a Missão Católica do Porto fizeram um grande movimento contra. Foi uma
publicidade tremenda. Sempre lotações esgotadas».
Vidal Valente abomina a evidência, incomoda-o a
ribalta. O palco. «Trabalhei sempre atrás: ou dos panos, ou das câmaras de
televisão». Amante da solidão, é um adorador de gatos: «Por dia gasto à volta
de mil escudos em comida com todos os meus protegidos».
Em casa tem dois, um cego de nascença e uma gata,
heróis da novela Ladrão de Violetas,
de Francisco Duarte Mangas: «Eu li e ele já me explicou que a partir da minha
dedicação aos gatos e ao TEP criou a história e inventou o Pepe, uma personagem
contraditória, detestável. Mas isso é ficção».
In Notícias Magazine n.º 539 – 22 Set 2002