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repórter
12 octobre 2006

Um homem do TEP


Trabalhou com António Pedro, com todos os nomes, nas últimas décadas do TEP. Bilheteiro, ponto, contra-regra, guardião de memórias, Vidal Valente é rosto discreto de uma companhia que insiste em experimentar teatro.

 

Texto de Augusto Baptista

«Eram dois. Um para o texto, outro para ver. Tocou-me algumas vezes abrir a cortina: Vossas Excelências dão licença de iniciarmos o ensaio? Na sala já estava tudo preparado. O que lia o texto precisava de um apoio, uma mesa com luz. O outro só via os movimentos».

Certo e sabido, a rondar a estreia, havia ensaio de censura. Momento penoso imposto pela ditadura que Vidal Valente, como ponto e depois contra-regra do Teatro Experimental do Porto, TEP, durante anos acompanhou: «No ensaio do Rinoceronte, uma peça de Ionesco, havia um manguito do João Guedes para o Vasco de Lima Couto. O visual, o censor visual, disse: Esse gesto é muito obsceno. E cortaram».

Para além dos gestos, sob a alçada visual recaía ainda o comprimento das saias, o decote das actrizes. E os movimentos: «Houve uma cena n'A Casa de Bernarda Alba, representada em 1972, em que o encenador, o Angel Facio, pôs a intenção de duas irmãs se abraçarem e rebolarem no chão. Isto é muito obsceno, não queremos cenas destas!».

O censor visual, vindo de Lisboa, mudava com frequência; o outro era do Porto e quase sempre o mesmo: «Este só cortava texto. Às vezes mandavam parar o ensaio e trocavam impressões. Tudo o que não se enquadrasse na moral deles, era riscado. Nem merda se podia dizer. E qualquer coisa que pudesse lembrar o Salazar, cortavam».

Os cortes eram um suplício para os actores, já engrenados nas marcações, nas falas. Mas tinham de ser cumpridos à risca: «Com A Casa de Bernarda Alba veio uma carta a dizer que não estavam a ser respeitados os cortes e a ameaçar proibir o espectáculo».

Quarenta e três anos de ligação ao TEP, fazem de José Maria Vidal Valente um conhecedor privilegiado da história da casa e das suas vicissitudes, desde as primitivas instalações numa antiga lavandaria da Travessa de Passos Manuel à actual sede em Vila Nova de Gaia, onde antes habitava a Junta de Freguesia de Mafamude. Deste atribulado trajecto guarda muitas recordações, memórias, referências. Mas pouco revela: «Sou como os médicos e os padres, tenho uma ética».

Homem de princípios, feitio reservado, Vidal Valente — nascido no Porto, em 1931 — cedo pisou o tablado. «A primeira vez que pontei foi aqui em Gaia, num espectáculo da minha avó, na Tuna de Santa Marinha. Tinha à volta de 15 anos». Mas a sua ligação ao Teatro vem de longe, é umbilical. A mãe, Nita Mercedes, era actriz; tal como a avó, Ema Orlandio. O pai, Lopes Valente, desde jovem ligado à cena, integrou o TEP, como ponto e como secretário da companhia.

Curioso é o facto de Vidal Valente ter aqui rendido o pai, nas funções de ponto: «A minha estreia coincidiu com a do João Guedes, como encenador, e a do Jorge Corte Real, como contra-regra. Foi em 1960, na peça O tio Vânia, de Tchekov».

Desde então, apaixonou-se pela actividade de ponto, que desempenhou com mestria. Diz o presidente do TEP, Júlio Gago: «Em Portugal, foi o António Pedro que acabou com a caixa do ponto no palco. No teatro e em televisão, o Valente trabalhava por mímica, transformando uma técnica de apoio numa área criativa».

De ponto, haveria de transitar para funções de contra-regra: «É quem cuida da disciplina em palco. E trata dos adereços, conforme a informação do encenador e do cenógrafo. Mas hoje é o produtor que trata disto». À sua guarda, durante anos, esteve ainda o património da companhia: roupas, quadros, documentos.

E cartazes. Um deles guarda uma história de resistência. E de coragem. «Eram dois pides à paisana e um polícia fardado. Chegaram ao teatro e foram ter com o meu pai: Queremos os cartazes todos! Fui lá atrás, afanei cinco ou seis, subi as escadinhas para a teia... Daí a pouco, já estava o meu pai Zé, tudo o que houver aí de cartazes dá a estes senhores. E eles levaram. Não fica cá nada?! Nada!».

Os únicos exemplares que sobreviveram à perseguição política foram esses, os que Vidal Valente escondeu. Todos os outros foram apreendidos, arrancados das paredes da cidade. «No cartaz, o Zé Rodrigues pôs uma mulher com um coração de Jesus a tapar o sexo. A Rádio Renascença da altura e a Missão Católica do Porto fizeram um grande movimento contra. Foi uma publicidade tremenda. Sempre lotações esgotadas».

Vidal Valente abomina a evidência, incomoda-o a ribalta. O palco. «Trabalhei sempre atrás: ou dos panos, ou das câmaras de televisão». Amante da solidão, é um adorador de gatos: «Por dia gasto à volta de mil escudos em comida com todos os meus protegidos».

Em casa tem dois, um cego de nascença e uma gata, heróis da novela Ladrão de Violetas, de Francisco Duarte Mangas: «Eu li e ele já me explicou que a partir da minha dedicação aos gatos e ao TEP criou a história e inventou o Pepe, uma personagem contraditória, detestável. Mas isso é ficção».

 

 

 

   In Notícias Magazine n.º 539 – 22 Set 2002

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