Poesia maior
Arquitecto de formação, Virgínio Moutinho é um
obreiro de quimeras, a que chama brinquedos. Escultor de utopias, as suas obras
aspiram ao perpétuo movimento, à concreta abstracção, ao pleno despojamento, ao
paradoxo. E à síntese, na alquímica transmutação da forma em fumo, da
substância em poesia. 1
Texto
de Augusto Baptista
Há quatro anos, propôs para o Parque da Cidade, no
Porto, um peixe metálico com quase dez metros, que andava debaixo de água e
emergia, de tempos a tempos, com um jacto e um urro. A aparição, comandada por
um computador, era sempre inesperada, surpreendente.
Saudado por todos, o projecto não se concretizou.
«Por falta de verbas» e, provavelmente, aduz o autor, por o seu nome não ter
peso na produção escultórica: «Não entrei no mercado, sou um outsider».
Este ignorado criativo, Virgínio Moutinho de seu
nome, cresceu em Avanca nos anos cinquenta, numa casa com quintal, rodeado de
gente, de bichos. E isso foi-lhe determinante. Também os pais, ao darem-lhe
poucos brinquedos e muita ferramenta, lhe modelaram o futuro. O desafiaram a
partir para a construção dos seus próprios objectos lúdicos: «A falta e o
desejo de ter desenvolveram-me uma certa capacidade de fazer».
São as casas, «as maquetas de casas feitas em
cartão e presas com alfinetes», as primeiras lembranças do que fez em miúdo,
«muito antes de ir para a escola». As primeiras e as mais dolorosas:
«Espetava-me muito, às vezes na unha, mas não desistia».
Cresceu a fazer carros de arame, barcos de casca de
pinheiro, carros de rolamentos. E um boneco de feira «com ar rechonchudo, de
bebé», transformou-o em herói de aventuras mirabolantes, entre jipes,
carrosséis, escorregões, «tudo feito à escala». No apuro da destreza e do
faz-de-conta, ajudou-o um Meccano: «uma caixa de construções inglesa, feita com
tiras perfuradas, parafusos e rodas».
Terminados os estudos secundários em Estarreja,
matriculou-se em arquitectura, na Escola de Belas-Artes do Porto. E aqui retoma
a construção dos seus brinquedos já «como objectos artísticos», processo em que
se exprimem heranças de miúdo e do brinquedo popular: «a figura humana muito
desenhada, tudo feito com muito pormenor, com um certo ar naïf».
Diversifica referentes, abre-se a outras geografias
e concepções: «O grande salto da cultura ocidental, nos princípios do século
XX, foi quando intercepta outras culturas e, em particular, a arte africana. O
cubismo e, antes disso, o fauvismo, têm a ver com a arte africana, com a arte
dos povos ditos primitivos. Nós estávamos no auge da representação, da forma
completamente explícita e, nessa altura, era necessário desvendar o poder
simbólico dos objectos, o seu poder expressivo».
Progressivamente, as suas criações vão-se tornando
mais abstractas, depuradas. Descobre Paul Klee, descobre Alexander Calder, «um
escultor que começou por construir um circo de brinquedo, com desperdícios,
rolhas, bocadinhos de arame, pano. E que fazia performances, isto nos anos 20.
Aos poucos, evoluiu para a produção de grandes brinquedos, de grandes
esculturas à escala da cidade de Nova Iorque, de Paris».
Neste caldear de caminhos, modela o seu: o do
despojamento, o da procura do essencial, o da síntese: «Eu muitas vezes
sinto-me aprisionado na forma, na representação. O grande salto era conseguir
concretizar coisas absolutamente abstractas, quase reduzir os objectos ao seu
movimento, torná-los desprovidos de forma».
Este mesmo desafio inquietou, inquieta outros
autores, sugere múltiplas formulações: «As sínteses são sempre pessoais. Quando
descobri Calder achei que ele tinha encerrado o problema da escultura cinética,
das grandes esculturas à escala urbana, a movimentarem-se. Entretanto, George
Rickey — um escultor fantástico, que morreu há pouco tempo nos EUA, com noventa
e tal anos — fez uma abordagem muito diferente, seguiu caminhos ainda mais
abstractos. E o assunto não encerrou».
A prova disso está também nas suas criações, nos
ensaios e experimentos que projecta, modela, concretiza. Está nos seus jogos de
bielas e manivelas, engrenagens, cremalheiras, nos seus maquinismos brincantes,
nas suas articuladas geringonças, onde o corpo se transmuta em movimento, som,
sorriso: «Ando a fazer uma série erótica. Acho fundamental trazer para o
universo da brincadeira também o erotismo».
Tudo quanto faz nesta esfera, diz, «é por gozo
pessoal», que a sua actividade como arquitecto quase não lhe dá tempo para
estas coisas. Para brincar. Para testar os limites do desenho, pô-lo em tensão
até à infinitude, descobrir-lhe o ponto de ruptura: «Enquanto arquitecto, o
desenho acaba no momento em que termino o projecto e o transfiro para outras
pessoas. Como escultor, onde sou conceptor e executor, decido coisas quando
passo da bi para a tridimensionalidade. Continuo a desenhar mentalmente, às
vezes com os próprios materiais. Aqui o desenho não tem fim».
Do traço concreto, dos traços imaginários, nascem
as suas obras: brinquedos, os seus brinquedos — de que quase nunca se separa —
e que são, simultaneamente, «pequenas maquetas para concretizações muito
maiores, à espera de lugar». À espera que as cidades as conheçam, as façam suas
também. E brinquem. «Claro, o objectivo é criar objectos lúdicos à escala das
cidades, permitir uma fruição colectiva, tornar as esculturas dinâmicas,
alegres». Inesperadas, como no caso da obra proposta para o Parque da Cidade,
no Porto.
O desafio está em tornar as estátuas lúdicas,
coloridas, menos sorumbáticas, menos estáticas. Está em tornar, enfim, as
estátuas não-estátuas. Tornar o vento, a luz, a água corpos integrantes de
composições escultóricas dinâmicas, expressivas, humoradas. Poéticas. Tudo em
grande escala. A outra escala a que é urgente projectar o génio de Virgínio
Moutinho.
1 Texto publicado
na revista Notícias Magazine