O retrato do retratista
Entre
as muitas possibilidades que a fotografia suscita, o retrato sempre foi a sua
primeira opção. Profissional com 81 anos de «puro amadorismo», Fernando Aroso é
— na palavra de António Pedro — «um admirável artista que é preciso conhecer». 1
Texto de Augusto Baptista
Caminha
inquieto, enquanto por gestos indica o trajecto para a entrada do estúdio:
«Tenho de o fotografar à minha maneira», magica. O outro senta-se, olhos
sobressaltados, rosto talhado a golpes de enxó, sem mais acabamento.
Um
rosto assim nunca vira em teatro, cabeça a ressurtir sobre um pescoço seco. Tão
avesso em mostrar-se, que desígnio o terá trazido? Que imagem buscará? Como não
ficar aflito sob o fulgor destes olhos alerta, fronte a trepar cabeça acima,
braços cruzados sobre um peito camponês?
Uma
palavra mal medida poderá ser a centelha a incendiar o lendário mau génio do
outro, deitar tudo a perder. Refugia-se em gestos comedidos, silêncios
demorados. Deambula entre projectores, no acerto da luz, do ângulo, do
enquadramento no visor da velha Rollei. E magica: «Tenho de o fotografar à
minha maneira».
Mão
no disparador, num quase sussurro, atreve pedir-lhe que olhe. Que olhe para
além da câmara, como quem procura... como quem procura um poema. O outro
balbucia Ó falcão, falcão, debicando as
estrelas e, sorridente, fala dos mistérios que podem soltar o verso: um
pedido inesperado, a palavra abraço de repente a emergir no dicionário, a lembrar que mais vale um abraço em vida
que o nome numa rua depois de morto.
Fernando
Aroso, o Arosinho, assim lhe chamava António Pedro, elege o frente-a-frente com
Miguel Torga como momento marcante na sua vida de fotógrafo. Evoca com emoção a
tarde de 1959, quando, ao seu estúdio na Rua Formosa, chegaram três inesperados
visitantes: Alberto de Serpa, José Régio, Miguel Torga.
Por
esta ordem os fotografou. Três retratos que integram a galeria dos famosos que
passaram pelo seu estúdio, se entregaram ao seu olhar, em demoradas e exigentes
sessões de trabalho.
Na
transição dos anos 50-60, está no auge. Intelectuais, artistas, os rostos mais
em foco da sociedade portuense aspiram a um retrato firmado por si. Para este
apogeu muito contribuiu a exposição de fotografia de cena e retratos de gente
do Teatro Experimental do Porto, TEP, em Fevereiro de 1958.
A
apresentação de António Pedro, aos microfones da Emissora Nacional, consagra-o
artista-fotógrafo, desiderato ao alcance das raras criaturas capazes de
escolher «não apenas o motivo que, quasi diria ser secundário — não é a qualidade
das pêras que faz a beleza de uma natureza-morta de Cézanne — mas escolher a
coincidência entre a luz, o objecto e o seu desenho no espaço, o jogo de claros
e escuros como esse espaço se estabelece, as relações de tonalidade que nesse
espaço criam os volumes e as formas».
De
«admirável artista que é preciso conhecer», Aroso torna-se conhecido. A
reforçar estatuto, publica dois livros de poesia, em 59 e 61. Mas são as
imagens, o seu modo de ver, a atmosfera psicanalítica
das suas sessões fotográficas, que lhe conferem aura: «Às vezes chegava quase a
hipnotizar a pessoa para conseguir aquele momento em que ela estava abstracta a
pensar noutra coisa».
Oriundo
da classe média, nasceu em Ramalde, Porto, em 1921. Nos estudos não foi longe
e, como castigo, o pai passou a levá-lo para o escritório da empresa de que era
sócio-gerente, na Rua Passos Manuel. «Mas eu não estava lá nunca, ia para o
Mesquita», reputada casa de fotografia ali bem perto.
Encafuava-se
no laboratório, fascinado pela câmara escura, a revelação: «Ali tirei um curso
de autodidacta». E, sempre de máquina, deambulava pela cidade, fotografava. Os
resultados via-os, com sobranceria e enfado, o velho Pedro Costa, traquejado
profissional, sócio do Mesquita: «Umamerdaumamerdaumamerda». Mas um dia.
Um
dia, jovem Aroso fez a cabeça de uma velha, na Ribeira. E a imagem foi à
inspecção do Costa, que olhou, remirou, chamou o empregado: «Faz aí uma 18x24».
Munido
da cópia em papel, não se fez rogado: «Fui logo à Foto Stand, na Rua Sá da
Bandeira, onde se juntava a gente toda do Grémio Português de Fotografia, que
funcionava nos Fenianos: o Manoel de Oliveira, o António Mendes, o Silva, o
Manuel Pinheiro da Rocha, Platão Mendes, dr. António Pinto de Miranda, dr.
Oliveira Alves...». Abordou este último, mostrou-lhe a obra, propondo-a ao
Salão Internacional de Fotografia. O outro olhou, remirou, «achou piada ao
atrevimento de um miúdo de 20 anos», acedeu: «Faça aí uma 30x40».
A
cabeça da velha foi o abre-te Sésamo de Fernando Aroso no mundo da imagem. Frequentou
tertúlias, integrou o núcleo fundador do Condor Cineclube e da Associação
Fotográfica do Porto, experimentou caminhos, «sempre à boa maneira da exigência
do amador».
Entretanto,
nos anos 50 surgiu o TEP. O actor Vasco de Lima Couto, seu primo, apresentou-o
a António Pedro, que o convidou a fotografar Antígona: «Nunca tinha feito
fotografia de cena, nem estava dentro do campo comercial. Mandei umas provas e
daí nasceu uma empatia tão grande com António Pedro que eu fiz todas as peças
dele».
Visando
«uma aproximação ao retrato», abre estúdio na Rua Firmeza, em 1959. São anos de
ouro, curtos e rápidos. Com a saída de António Pedro do TEP, em 1961,
interrompe a colaboração com a companhia. Em 1965, transfere o estúdio para a
Rua de Entreparedes.
Com
o declínio do preto e branco, orienta a actividade profissional para o meio
discográfico. Politicamente desligado, «nunca me filiei em nada», fotografa
José Afonso, Adriano, Fanhais, «essa gente toda dos andarilhos, os cantores de
protesto». E fadistas, ranchos, grupos musicais, cantores populares: «Fiz até
hoje à volta de duas mil capas de discos».
Edita
postais, calendários, experimenta a fotografia industrial, publicitária. E
perde-se no Porto, a captar ruas, casas, clarabóias, batentes, estátuas,
cemitérios. Por puro amadorismo. Expõe, edita álbuns (Dádivas do Tempo, Pontas de Rolo), fotografa a cidade com olhos de
retratista: «A câmara é um ponto de intercepção entre o assunto e o fotógrafo.
E é nesse ponto que se capta o momento, o tal momento mágico, a pessoa». O
mundo.
1 Texto publicado
na revista Notícias Magazine n.º 543, 20 de Outubro de 2002.