Cavalhadas na Beira Baixa
Em Monforte da Beira e no Rosmaninhal, freguesias
raianas vizinhas do Tejo, o povo festeja o S. João (23 e 24 de Junho) de um
modo especial. O santo é aqui agarrado pela
família do Alferes e dos Padrinhos – gesto devoto, cada ano renovado – o que
incendeia a noite em galopes de fogo, alvoroça os dias com disputas hípicas e
cortejos gordos de cavalaria. 1
Augusto Baptista
Rosmaninhal cada vez mais longe, o carro a galgar,
veloz, Castelo Branco ainda distante. Ensonado, oiço o motorista a falar da
vida, da região, da falta de mão-de-obra, da desertificação, deste tempo de
oportunidades perdidas. E do negócio das ovelhas e do queijo, que junta à
exploração de um café, e ao carro de praça, e às boas perspectivas na venda de
materiais de construção. Demasiadas frentes de trabalho para um homem só, mais
a mulher, que os filhos saíram da terra.
E a paisagem a fugir para trás, como o tempo, eu,
atenção concentrada para a frente, na ideia de apanhar a camioneta das nove da
noite em Castelo Branco, para arribar no Porto ao alvorecer, após três horas de
espera em Coimbra.
Foi curta a passagem por Monforte da Beira e pelo
Rosmaninhal, onde só um motivo forte — uma festa especial, as Cavalhadas — me
poderia trazer a lugar tão raiano, Tejo a cingir a cintura da nossa geografia.
Das Cavalhadas tive notícia pelos escritos de Jaime
Lopes Dias, a que Azinhal Abelho deu eco nos anos 70 (Teatro Popular Português,
IV): «Representações populares das mais alegres e movimentadas, as cavalhadas fazem parte do ciclo festivo
do S. João e realizam-se, ainda hoje, nas povoações de Monforte da Beira
(Castelo Branco) e Rosmaninhal (Idanha-a-Nova) (...)».
Na região, outro é o entendimento: «Para o
Rosmaninhal, Cavalhadas significa a tradição de partir os púcaros, esse tipo de
jogos, na festa de Agosto. Como designação da festa de S. João Baptista,
Cavalhadas é um termo novo, vindo de fora», opina Mário Chambino, autor de um
estudo recente sobre o evento, no Rosmaninhal. Por perto, cavaleiros a toda a
brida, correm a argolinha. «Destas corridas, diz-se aqui que é tirar o galo. E quando os cavalos andam
na rua com a bandeira do S. João, a isso chamam a volta».
É também esta a perspectiva que surpreendi em
Monforte da Beira. Diz Luís Matos Pires, o
Cotovio, criador de cavalos: «As Cavalhadas aqui é partir panelas de barro,
a 15 ou a 16 de Agosto. As panelas têm lá dentro um pombo, uma rola, água,
cinza, o que calha... e o cavaleiro leva com tudo em cima. Estas festas, agora,
não são Cavalhadas, são procissões do S. João».
A coincidência de opiniões coexiste com uma grande
proximidade de procedimentos, no modo de fazer a festa nas duas povoações. E o
curioso é que, quer em Monforte, quer no Rosmaninhal, uns não conhecem a festa
dos outros. Como se os dois povos, tão perto, vivessem de costas voltadas.
Encoste-se aqui
A vinda à Beira Baixa impôs plano. Como ir, onde
ficar? Quando se viaja em transporte público, o país cresce. O tempo dilata-se.
Tudo se complica. É preciso ponderar a acção, calcular os gestos, medir os
passos. Porto - Castelo Branco, com escala em Coimbra, são cerca de quatro
horas e meia de autocarro expresso. De comboio seria bem pior: obras na linha,
em certos troços da Beira Baixa, opções de horário reduzidas.
Pernoito em Castelo Branco, 22 de Junho de 2001.
Pela manhã de 23 rumo para Monforte da Beira, carro de aluguer: três contos e
duzentos para vencer uma vintena de quilómetros. Cá chegado, ataco um pão com
presunto, mais ornato do que substância. De faca e garfo, só de encomenda se
almoça aqui.
Complicada, a dormida. Onde ficar? Quartos para
alugar, não há. Destino é o relento, máquinas fotográficas a servir de
travesseiro, ou uma ida para Castelo Branco, ou para o Ladoeiro, madrugada
alta. E transporte? Na encruzilhada, vale a disponibilidade dos festeiros:
«Encoste-se aqui, se quiser. Não repare, nem ligue ao barulho. Vai ser a noite
toda».
São três da tarde. Encostado, estou em casa dos
festeiros (gesto nobre, que agradeço), naquela que é hoje a rua principal de
Monforte. Júlio Teixeira e a mulher, Maria Manuela, emigrantes em França,
vieram de propósito de Tours para pagar promessa. Agarraram o S. João, agora têm de fazer a festa: garantir a
sagração do santo conforme as tradições, assegurar os comes e bebes, a música
ao vivo no arraial, enfim, demonstrar, na prática, que foram e são merecedores
da benfeitoria.
S. João Baptista está representado em um estandarte
que os festeiros desfraldarão à janela de casa. E que, em cortejo hípico
encabeçado pelo Alferes e dois Padrinhos, será depois levado em repetidos
percursos pelo povoado, itinerários e horas que a memória guarda.
Alferes é Tiago Oliveira, encorpados 17 anos, filho
do casal de festeiros, igualmente em Tours, também ele daí vindo de propósito
para levar a bandeira. Padrinhos são os genros Luís Carvalho e Luís Furtado,
ambos a viver em Lisboa.
A alma da casa é Paula Carvalho, irmã do Tiago e
mulher do Luís Carvalho. Estudou a festa, a tradição, industriou-se ao pormenor
sobre o que fazer e como fazer. E fala do assunto com sabedoria. Sem hesitação,
sintetiza o programa, deixa antever as atribulações que me esperam.
Daqui a pouco, o S. João virá para a janela da casa
— elucida Paula. Nessa altura, o povo e um grupo de cantadeiras, a tocar adufe,
darão as boas-vindas ao santo. À noitinha, haverá uma volta de cavalos ao povo.
O S. João sai da janela e será levado pelo Alferes, pelos dois Padrinhos.
«Atrás segue o acompanhamento: pessoas em cima de burros e de cavalos. Tudo a
correr as ruas, a saltar fogueiras, a dar vivas ao santo».
O programa das festas, ainda em 23, irá
completar-se com arraial: «Sardinha assada grátis, as bebidas ao preço
simbólico de cem escudos, conjunto musical». Amanhã, o cortejo sairá pela
manhã, «sempre a andar devagarinho», adverte Paula. À janela, as pessoas porão
fitas na bandeira, darão dinheiro. Depois da missa, à tarde, o S. João voltará
a sair: vai à Devesa, às corridas de cavalos, de burros e de gente a pé.
Ganhará um galo quem primeiro chegar à meta. Para rematar a festa, diz Paula:
«Vão todos para a porta da igreja. O S. João, a bandeira, é entregue aos
festeiros do próximo ano. As senhoras do adufe cantam e, à noite, já corre tudo
por conta dos novos festeiros».
A família da Paula agarrou o S. João por razões de saúde. No concreto, a mãe, Maria
Manuela, «muito nervosa, prometeu se o simples tremer das mãos lhe passasse,
daria a festa. Isso aconteceu, ela cumpriu».
Em Monforte, nos próximos dez anos, o santo já está
agarrado. «Antes, as pessoas que
tinham promessa iam para a porta da igreja disputar a bandeira. Mas não era
rentável. Uns ficavam com o pau, outros com o pano. Só quem ficava com o bocado
de tecido é que dava a festa. Era um prejuízo. Então arranjaram uma listinha,
de boca em boca», esclarece Paula.
A confirmar o programa, ao fim da tarde, S. João
Baptista — modesta estampa 30x40 cm, afixada ao estandarte — assoma à janela
pelas mãos de Maria Manuela, pagadora da promessa. A rua enche-se. As mulheres
atacam os adufes, as pandeiretas. E as cantigas.
Surpreendente é o pormenor com que estão regulados,
por herança costumeira, todos os passos e preceitos da festa. É o profano a
imitar a ritualização do sagrado. As voltas do S. João têm trajectos definidos,
há sítios próprios para implantar as fogueiras. E há procedimentos consagrados
bem curiosos: a bandeira do S. João não entra, não sai, pela porta da casa do
festeiro: só pela janela pode circular; quando o estandarte do S. João anda na
rua, nas mãos do Alferes, o sino não pára de tocar; após as voltas, os
cavaleiros ungem com vinho a cabeça do burro ou do cavalo; e há formas,
fórmulas e nomes específicos para designar a doçaria de S. João: broas,
biscoitos, bolo dos santos, borrachão. Todos estes doces têm uma função
principal: agraciar quem na terra ajudou os festeiros a suportar despesas e
canseiras.
Alguns usos definharam. É o caso da disputa da
bandeira no adro da igreja, para agarrar
o S. João. «Também havia uma promessa que só uma égua branca podia levar o
Alferes e o estandarte. A senhora faleceu, agora vai branca, preta, o que
aparecer», assegura Manuel Pinheiro Sanches, Manuel Brasileiro, 65 anos,
reformado do Arsenal do Alfeite.
O essencial da festa mantém-se inalterado, embora —
lamenta Manuel Pires Freire, presidente da junta de freguesia — «Antigamente
isto estava tudo aí cheio de cavalos... cavalos e burros. Ruas cheias. Agora,
nem metade. E também dantes havia muito mais fogueiras». Razões? «Isto está
desabitado. Tem para aí morrido gente que é o fim do mundo. E quem sabe a
tradição são as pessoas antigas, não é a mocidade. Os novos gostam de ver;
fazer, não fazem!». Mas, este ano, o Alferes é muito novo e veio de França,
contraponho. «Quando falo de mocidade, não é um ou dois».
Galopes de fogo
Bandeira de S. João à janela, dadas as boas-vindas
ao santo, a expectativa centra-se na noite, anunciada por esta gente grudada às
portas, às esquinas, em grupo. À espera. E por braçadas, montes de palha e rama
prontos para a expiação. Tento saber ao certo o itinerário do cortejo. Colho
informações desencontradas. Na impossibilidade de desenhar um trajecto preciso,
decido-me por procurar um ponto fixo de observação, na esperança de conseguir
daí um registo, um fotograma só que seja, para ilustrar o acontecimento —
correndo o risco de acabar assado pelas estafermas labaredas que me pintam:
imolação sem glória nem eco, mesmo nas crónicas locais.
«Chama grande! O importante é chama grande, fogo
rápido, para fazer parar o S. João!», diz o presidente da junta. E, olhos a
arder: «Força de quentura! Aqui o que a gente quer é logo força de quentura!».
Ademais, fico a saber, «já tem havido anos em que muitos caem das bestas,
partem braços e coiso... O animal vai a correr, escorrega, tropeça, cai no
fogo».
Versado em fogueiras é também Manuel Brasileiro,
grandes olhos por detrás das lentes: «Vai-se ao mato, traz-se giestas, charras,
rama de fava, põe-se aqui à laia de uma choça, dois paus, depois tudo em
volta... e pega-se fogo». Perspectiva de céu em labaredas, «dantes as fogueiras
eram pegadas umas às outras, desde a igreja até aqui», eu sufocado, um bendito
hálito repressivo: «Agora é tudo mais oprimido. Temos cá a electricidade». Mas
o que tem a ver a electricidade com as fogueiras? «Os fios! Quando cá puseram a
electricidade, as pessoas esqueceram-se... e os fios andaram por aí a arder».
Abrasado pelos relatos, monto arraiais num terraço,
providencial espaço altaneiro sobre estratégico cruzamento. De repente, já eu
em cota alta, à voz «Aí vêm eles!» alguém na estrada ateia fogo a um molho de
palha e rama seca. Como pólvora, as labaredas explodem, alterosa «chama grande».
Mãos ígneas agarradas aos fios, aos fios da electricidade, o fogo! Estrelinhas
e faúlhas a voarem em todas as direcções, eu dentro da «força de quentura»,
alvoroçado. Baforada benfazeja verga as chamas. Elásticas, lambem o chão, a estrugir.
No meio, alguém baldeia água. No frenesim, rente à parede, entre gritos «Viva o
S. João!», clamores roucos «Viva a bela sociedade de Monforte!», cavalos à arreata,
passa o Alferes, passam os Padrinhos, passam os cavaleiros. Tudo a correr, tudo
a galope, sempre a passar. Como um relâmpago!
Então isto é que é saltar a fogueira do S. João?!
Deitado sobre a cama, roupa vestida, fecho os
olhos, a flamejar ainda. Porta fechada, o quarto, interior e quente, sugere-me
um micro-ondas. Lá fora, rés à fachada, o arraial! Na rua, plena de música,
gente a dar ao pé, a beber. Em bando, jovens cortam as voltas a Morfeu, gozam a
festa. À rédea solta!
S. João era bom homem
Se não fosse tão velhaco
Foram três moças à fonte
Foram três, vieram quatro.
«Claro que é uma festa religiosa!». Victor Beirão,
jovem padre, em Monforte da Beira «vai para cinco anos», não tem dúvida sobre o
carácter cristão do evento. Vê, aprecia, acompanha os festejos, em comunhão com
o seu rebanho, diverge dos párocos que, noutros tempos, em conflito com o povo,
«acharam que isto eram coisas emocionais, sem grande racionalidade, e queriam
deixar de rezar missa».
Pessoalmente, diz, valoriza o lado emotivo da vida,
distancia-se «de uma geração de padres que deixou de ligar importância aos
símbolos e tornou os encontros e as práticas cristãs um bocado maçadoras, só à
base de discursos, papelada, burocracia e muita conversa».
Nesta base, defende um sacerdócio próximo das
pessoas concretas, «que não sabem fazer discursos, mas falam com o coração e se
arrepiam quando passa o Alferes com a bandeira». Se arrepiam e choram,
testemunha Paula Carvalho: «Eu vejo a bandeira à janela, fico toda arrepiada. E
não consigo parar as lágrimas. Vêm de dentro. Não faço força, é assim uma coisa
mais forte do que eu».
Este arrepio sente Joaquim Pires, o festeiro para
2002, chefe de estação da CP, na reforma: «S. João Baptista é milagroso».
Emociona-se: «Acredite, S. João Baptista na minha casa fez um grande milagre».
Em consequência, ele e a mulher, Maria da Conceição, decidiram levar para a
frente «esta festa que condói o coração», festa de pobre, a bem dizer: «Os
ricos nunca deram o S. João. Talvez a miséria não cuide tanto a eles», suspeita
Joaquim.
Na volta grande da manhã de 24, a bandeira de S.
João vai «aos cantinhos todos do povo», ritmo marcado pelo tambor de José
Grilo, 39 anos, pedreiro: «Ando à frente da eguada a tocar, para chamar a
atenção das pessoas». O cortejo anunciado abre com o Alferes, bandeira ao alto
e, vela apagada na mão, os Padrinhos. Segue-se, compacta, a devota coluna de
cavalaria. As pessoas assomam às janelas, às varandas, dão sonoros vivas a S.
João. Emocionadas. Arrepiadas. Prendem fitas votivas no estandarte, e notas:
contos de rei a drapejar.
S. João é meu irmão!
Presenciada a volta da manhã em Monforte, demando o
Rosmaninhal. O trajecto cumpre-se numa paisagem sem sobressaltos, planície
macia de vegetação rasteira, o mais das vezes. João Pires, o taxista, fala da
sua exploração agrícola, que verdeja algures na ponta do dedo a atravessar o
pára-brisas, e discorre sobre enigmáticos roubos de fardos de feno nos campos,
desaparecimentos sem rasto de cortiça nos sobreiros. No seu caso, até o
fumeiro, o aprimorado salpicão que a família guardava na adega, levou sumiço.
A bordejar o asfalto, plantações de tabaco em
regime extensivo e, anunciada por um cercado metálico persistente, uma reserva
de caça «de um tipo do Norte». Ronda as duas da tarde, chego ao Rosmaninhal.
A esta hora estão os festeiros e convivas no bodo.
Na planura do campo da bola, uma edificação de aparência gimnodesportiva,
pegada de cernelha por um toldo de malha rala. Sob a luz coada, duas compridas
mesas, bancos corridos.
Não são muitos os convivas. Pelos lugares vazios,
pela quantidade de comida a sobrar nas panelas bojudas, tripé de ferro,
imperativo é concluir que muita gente faltou ao almoço: lamentável desencontro
de meios e de repastantes, face à magnificência do ensopado de ovelha, obra
poética de um colectivo de cozinheiras, a esturricar ao sol do descampado.
Este ano faltou a banda, na festa do Rosmaninhal,
onde — ao contrário de Monforte da Beira — «a música é uma coisa principal».
Por isso, a «fraqueza da festa», o decréscimo de adesão, até no bodo. Na
explicação do caso, há quem arrisque mais longe: «Isto é uma festa de família, uma
festa de promessa. Se a família é mais ou menos abastada, a festa tem mais ou
menos força». O S. João, este ano, opinião dominante, «não é como devia; mas
fizeram, e isso é bom».
Os próprios festeiros não escondem o
constrangimento de as circunstâncias os terem impelido a ir para a frente: «Um
familiar nosso agarrou o santo.
Chegou a altura da festa, não quis. Ficámos com o povo às costas». Por razões
de honra, pai Domingos, filhos João e Luís, todos Correia, já com dois S. Joões
no activo, reincidiram.
A promessa antes feita pagava benfeitoria gorda,
confessa Luís, 42 anos, o Alferes: «Tinha ataques, ficava como morto no meio do
chão. Eram precisas três e quatro pessoas para me segurar. E santo S. João
tirou-me a doença toda». Um caso assim fundou laços de sangue: «Santo S. João é
meu irmão!».
João, um dos Padrinhos, tractorista, «a máquina é
minha», também já resgatara a promessa da perna partida. Elisabete Caldeira,
prima de João e de Luís, que na festa faz o papel de segundo Padrinho, está na
idade em que nada há para expiar: 14 anos.
Após comerem, Alferes entre Padrinhos, rente às
seis, é dada a volta da tarde, cortejo equestre a rondar o povo, a prenunciar
as disputas a cavalo, na antiga canada do Espírito Santo. Em boa verdade, esta
versão beirã da corrida da argolinha — tirar o galo, aqui se chama — foi a
grande razão da minha vinda.
De resto, no plano formal, impera a similitude
entre festas, com umas quantas disparidades. Citem-se algumas: «Para o povo do
Rosmaninhal a banda é que representa o S. João»; na volta da manhã, hoje depois
da missa, «aqui vai padre, vão quatro andores, o santo, e os cavalos do Alferes
e dos Padrinhos»; por fim, em Monforte, a tiragem
do galo faz-se por corrida, a cavalo ou a pé, disputas de dois, para ver quem
primeiro chega à meta.
Serão agora à volta das sete da tarde, no
Rosmaninhal. A declinar, o sol deixa em contra-luz os cavaleiros. Partem da
zona baixa da rua, cavalos em sonoro galope sobre o empedrado, sempre a subir.
O povo cose-se à borda poente da estrada, trepa os muros que limitam os dois
lados. Aos 200, 300 metros de desvario, os cavaleiros alçam-se no estribo, vara
na mão. Ânsia quase sempre a desmaiar em frustração, ao passar a corda. A corda
alta que atravessa a estrada: pendentes duas humildes argolinhas, enlace de
ramo de oliveira, boca de dez centímetros, quando muito.
Sobre a corrida da argolinha no Brasil, Luís da
Câmara Cascudo diz que o simpático elo, a argolinha, é ali apreciado troféu,
oferenda com que os dextros cavaleiros distinguem personalidades, moças,
senhoras. Mais garante: no imenso Brasil popular, corre-se argolinha desde o
século XVI (Dicionário do Folclore Brasileiro, 1954).
No Rosmaninhal, argolinha resgatada não tem
estatuto, não tem poesia. É uma coisa: serve só para tirar o galo. Neste
particular, o Brasil nos ganha. E na idade? Em que século, desde quando se
persegue argolinha na Beira Baixa? Vale-me anónimo testemunho, na hora da
despedida: «Isto tem muito ano. Os S. Joões aqui nunca acabaram!»
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Cavalhadas
em Português
Cavalhadas são actividades festivas de cavalaria,
versão popular das justas e torneios: jogos guerreiros que outrora serviam para
a nobreza aprimorar a prática das armas, adestrar capacidades nas montadas,
passear vaidades e louros, diante de fermosas
donzelas. 2
No século XIX, as Cavalhadas eram também designadas
por Torneios à Antiga, Jogo das Justas, Encamizadas de S. João. Realizadas com
pompa e cor, incorporavam um vasto programa de actividades: cortezias, corrida
da argolinha, encenação das velhas lutas cristãos-mouros, corrida do estafermo,
jogo de canas... 3 e 4
Alusão burlesca às Cavalhadas eram os Cavalinhos
Fuscos, espectáculo outrora vulgar nas áreas rurais e que animou a Praça de
Évora, «para denegrir a Decencia de huma cidade digna de melhores Cabeças», em
7 de Agosto de 1814: «Vinte e quatro homens de unha negra e enserolada,
montados nas ruins Bestas de suas Pessoas, com ancas sobrepostas de mal
arranjados trapos, e com pescoços e cabeças de Cavalinhos, amarradas ao baixo
ventre, com jaquetas, e xapelinhos muito guarnecidos de ouro-pele, nastros,
trançadeiras, penaxos e guizos, fizerão hum arremedo do Jogo das Justas, pela
parte do burlesco, e da redicularia.» (Teatro Popular Português, VI, Azinhal
Abelho).
Aos nossos dias, e a certos lugares, chega a
palavra Cavalhadas, remetendo o conceito para sobrevivências locais de algumas
das facetas dos exercícios equestres que incorporavam os Torneios à Antiga,
designadamente a corrida da argolinha. Noutros lugares, a palavra adquiriu o
nexo lato de acontecimento festivo, cariz profano ou religioso, com algum
protagonismo hípico: desfile, procissão, cortejo. Noutros lugares ainda, a
designação perdeu-se, mas sobrevivem traços da velha realidade das disputas e
dos desfiles de cavalaria.
Nos Açores, ilha de S. Miguel, freguesia de Ribeira
Seca, as Cavalhadas de S. Pedro (29 de Junho) são vistosos desfiles de
cavaleiros e suas montadas, no pagamento de promessas ou, simplesmente, pelo
gosto de participar.
Em Vildemoinhos, Viseu, Cavalhadas são as festas
que decorrem durante três dias, por ocasião do S. João, com ponto alto no
cortejo de 24 de Junho. O desfile abre com um grupo de seis cavaleiros: dois
embandeirados e vestidos a rigor — os mordomos —, quatro vestidos "à povo".
A eles hoje se junta um numeroso grupo de cavalaria. O grosso da coluna festiva
é, no entanto, constituído por carros alegóricos. E há bandas, fanfarras,
ranchos, coches à antiga.
Em Crasto, S. João da Ribeira, é dado o nome de
Cavalhada à ida a Ponte de Lima de uma ou duas carroças, puxadas a cavalo, no
último dia de feira na vila, antes da realização do "Auto dos
Turcos". Em Ponte de Lima, há desfile: dois Soldados, dois Vigias, dois
Porta-bandeiras, todos a pé; na carroça, vão os dois Reis (Cristão e Turco). A
Cavalhada só se realiza nos anos em que há "Turquia" em Crasto e visa anunciar o evento.
No Rosmaninhal e em Monforte da Beira o termo é
popularmente associado aos jogos tradicionais que constam do programa das
festas de Agosto (cavaleiros em busca de prémios, partindo bilhas de barro).
Em Cantelães, Vieira do Minho, cavaleiros montados
em garranos a galope disputam um cabrito, procurando enfiar uma vara numa
pequena argola de ferro (com cerca de quatro centímetros de diâmetro), presa a
uma corda. A tal função, que ocorre obrigatoriamente na Festa do Senhor (18 a
20 de Agosto), chama o povo da zona: corrida ao cabrito.
Em Pedroso, Vila Nova de Gaia, no mês de Agosto
corre-se a argolinha e há competições hípicas promovidas pela Associação de
Criadores e Proprietários de Cavalos de Corrida do Norte de Portugal, sede em
Serzedo, no quadro das festas de Nossa Senhora da Saúde.
No Bunheiro, Murtosa, distrito de Aveiro, corre-se
actualmente a argolinha, mas não a cavalo: de bicicleta! Antigamente – segundo testemunho
de António Joaquim Matos, 79 anos, natural da terra e reformado da Marinha
Mercante – as
disputas faziam-se a cavalo e já também de bicicleta, na rua, em ocasiões
festivas. E havia as pateadelas: «andavam ali a correr a cavalo com umas lanças,
até cortarem a cabeça dum cabrito pendurado numa corda». Correr a argolinha hoje no Bunheiro, conforme as
disputas a que assistimos na Casa-Museu Custódio Prato (Maio de 2003), consiste
num jogo em que vários ciclistas tentam, sem pousarem o pé no chão, enfiar um
arame com cerca de meio metro, ponta de 2 centímetros dobrada em ângulo recto,
numa pequena aliança de plástico. O êxito da tentativa é premiado com uma
argola de pão de Valongo.
No Ribatejo, segundo informação da junta de
freguesia de Arneiro das Milhariças, aqui e noutras aldeias da zona, «por
altura dos festejos do Mártir S. Sebastião, no dia 20 de Janeiro, (...)
jogava-se muito o jogo das cavalhadas. E, caracterizando a actividade, que no
Arneiro durou até 1933: «Este jogo consistia em se atravessar na grande rua uma
corda com argolas, onde se punham bilhas com água, urina, gatos, coelhos, etc».
E, adiante, precisa-se que as Cavalhadas se jogavam a cavalo, cavaleiros
munidos de «pau ou uma verdasca, para em corrida atirarem às bilhas e às argolas».
No Algarve, José Martins Canário, 78 anos,
protagonista em jovem, no Pechão e em Bela Curral, do "Combate dos Mouros
e Cristãos", disse-nos em 2002: «Na festa do Pechão, quando eu era moço,
havia cavaladas, corridas de cavalos,
tirada de frangos com cavalos. Era à
tarde, no Verão, na propriedade, tudo seco... Atravessava-se uma corda e punham
lá... sei que aquilo tinha uma argola qualquer e eles levavam um pauzinho na
mão, tentando enfiar. Quem conseguisse, tirava o prémio. Não sei se tinham os
frangos mesmo pendurados, já não me recordo. Chamavam a isto a tirada de frangos».
Também chegaram a Cabo Verde, e aí sobrevivem, as
Cavalhadas. Nas festas de S. Filipe, Ilha do Fogo, Cabo Verde, realizadas
anualmente entre 26 de Abril e 1 de Maio, os cavalos são presença apreciada,
indispensável: participam na procissão religiosa (cavaleiros embandeirados,
camisa branca, calça preta), há corridas junto ao aeroporto, torneios e
brincadeiras hípicas no Largo de S. Pedro, a 1 de Maio (sacos de terra, cinza,
rebuçados). Há argolinha: «É posta numa corda, entre dois postes aqui no largo.
Os cavaleiros vêm a correr, começamos daqui, eu sou um deles também, apanham a
argolinha com a ponta de uma vara e levam-na. A argolinha começa com um
diâmetro de mais ou menos 10 centímetros e depois metem uma grande, que os cavaleiros
apanham com a cabeça» – confia-nos em
Setembro de 2005, no Fogo, Carlos Alberto Monteiro, cavaleiro e entusiasta da
festa.
Ao Brasil, a partir do século XVI-XVII, e saídas de
Portugal, arribam as Cavalhadas: justas e torneios, corrida da argolinha, luta
encenada dos Doze Pares de França contra os Doze da mouraria... Este corpo
cultural disseminou-se no vasto território brasileiro, incorporou o imaginário
popular, ganhou estatuto de folgança, assumindo hoje – com
caldeamentos vários – matizes regionais diversificados.
Em Pirenópolis, Goiás, as Cavalhadas são o apogeu
da festa do Divino Espírito Santo. Durante três dias, batalham cavaleiros
mouros e cristãos, 12 de cada lado. Na corrida da argolinha se centra também
muita da animação da festa, com os cavaleiros em disputas de destreza e a
oferecerem cada argola resgatada às entidades presentes.
Ainda em Goiás, estes festejos animam Jaraguá,
Santa Cruz de Goiás, São Francisco, Corumbá, Palmeiras... Mas, representadas em
diferentes ocasiões e em muitos Estados, no imenso Brasil popular, as
Cavalhadas pulsam desde tempos antigos. No Nordeste, delas só consta a corrida
da argolinha. Outras têm cariz de cortejo, com propósitos religiosos. E há as
que integram um príncipe e a filha de um rei turco, princesa donzela: Floripes,
a quem outros chamam Floripa.
.............................
Notas
1 Esta reportagem refere-se aos festejos em honra de S. João Baptista,
no Rosmaninhal e Monforte da Beira, Junho de 2001. O apêndice "Cavalhadas
em Português" complementa a reportagem. Estes dois textos foram publicados
em “Praça Velha - Revista Cultural da Cidade da Guarda”, ano IX, n.º 19, Junho
2006, págs 259 a 269.
2 Sobre as Cavalhadas e sua génese entre nós, escreve Guilherme
Felgueiras: «As justas e os torneios, precedidos com frequência de
representações mímicas e bailados, vão criando adeptos entre os nobres e
cortesãos que, divertidamente, se adestram com tais jogos bélicos ou de
destreza, em simulados campos de liça. Imitando até certo modo os torneios,
surgiram mais tarde as canas, que,
por sedimento, derivaram nas cavalhadas
de nossos dias, renhidas folganças populares em uso ainda nas terreolas
provincianas. Os lidadores – substituídos
os ginetes pelos orelhudos jericos e munidos de canas ou de varas – pleiteam
prémios suspensos duma corda, no geral um esporado sultão das «capoeiras» – "Teatro", págs. 282 e 324
(corrigenda), in "A Arte Popular em Portugal", 2.º vol., Editorial
Verbo, s/ data, direcção de C. Pires de Lima.
3 Ainda sobre as Cavalhadas, ver "Evora — Jocoza e Circunspecta,
Conçorcio do Burlesco e da Decencia ou Narração Historica, Politica, e
Diplomatica das Festas de Evora na Paz Geral de 1814 Desde 29 de Julho até 15
d'Agosto Offerecida (...) por hum filho de S. Francisco 1814", in Azinhal
Abelho, "Teatro Popular Português", VI, págs. 29 a 41: «Este antigo,
e nobre exercício dos bons Cavaleiros Portugueses, que tantos malles trazia
consigo, em consequência do dispotismo, da altivez, e do desenfreamento, que os
Cavaleiros professavão, desde que se comutavão em agressores, e em bandoleiros;
foi nas Espanhas, e na Lusitania que teve o maior auge e o maior esplendor.
(...) Temos bem fundadas razoens para acreditar que Evora sempre famoza por
suas remotíssimas antiguidades, teria sido o mais brilhante Campo dessas
memoráveis antigas justas (...), aonde ainda hoje se conserva, como em nenhuma
outra parte, o nobre, o antigo jogo das Justas ou Cavalhadas. São os Lavradores
do termo de Evora quem conserva este respeitável resto dos costumes e prendas
de seos nobres ascendentes, que de huns a outros passa como herança (...). Eles
tem por hum dever de sua antiga nobreza o virem jogar as armas na grande Praça
da Cidade de Evora sempre que nela se celebrão Festas públicas, e o fazem pela
maneira seguinte – Vinte e quatro Lavradores os mais destros na arte de jogar
as Justas montados nas suas melhores Egoas, acompanhados de seus pagens, que
levão à déstra outras tantas, e também ajaezadas para se melhorarem quando he
preciso, apprezentão se na Praça em duas alas, formando pares de dois em dois,
que vem a ser reciprocamente competidores hum do outro. O uniforme dos
Cavaleiros, e das armas he em tudo perfeitamente igual, excepto nas cores, que
são sempre opostas. Todos vestem calça branca, mas as jaquetas de huns são
encarnadas guarnecidas de amarelo, e as dos outros são azuis, bordadas de
branco; com a mesma alternativa de cores são as Lanças e os Cocares da Cabeça».
4 Pelo interesse documental, pela dinâmica narrativa, na sequência da
nota anterior e com base na fonte aí citada, transcreve-se mais esta referência
ao Jogo das Justas, em Évora, na tarde de 2 de Agosto de 1814: «Postados na
Praça em linha de Batalha, ficando à direita os de huma cor, e à esquerda os de
outra, elles empunhão as espadas; e sahindo os dois pelo centro, vão formando
duas alas alternadas; e a galope solto xegão em frente do Senado, a que fazem
as continências; e desdobrando com uma veloz paçagem de mam, sem jamais
afrouxarem de galope, voltão, por hum composto de duas paralelas, ao seu
primitivo posto, donde tornão a sahir, umas vezes pelo centro, e outras pelos
flancos, sem perderem a ordem nem os seus respectivos competidores. Nestas
marxas e contra marxas, umas vezes a galope e outras a meja brida, outras a
toda a brida, formão circulos, abrem seguementos, descrevem deagonaes, torcem,
e destorcem oitos de conta, pação de mão pela direita, e pela esquerda com
indizivel velocidade e firmeza. Vibrão as lanças, manejão as Espadas, correm as
canas, trespação as argolinhas, cobrem-se dos tiros com os escudos, trespação
as aves à ponta de lança e acometem o Estafermo, com hum impetu, huma firmeza,
e uma velocidade tal, que não pode descreverse, nem facilmente limitarse, sem
que jamais aconteça perderem a ordem, nem diminuirem a galhardia, a beleza e a
rapidez».