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repórter
10 août 2007

Dos cheiros


Quando chovia, todo o mundo ia ver derrapar os carros. Os que mais dançavam eram os mais cautelosos, os que mais devagar se faziam à ladeira. Ziguezagueavam no paralelo besuntado e, à boca do armazém, quase a vencer o íngreme percurso, navegavam sem norte. Um suplício. Um longo suplício de carros desgovernados a lamberem a estrada, berma a berma. Até se deixarem escorrer para baixo. Vencidos. O povo ria. E a humilhação durava horas. Durava, enfim, o tempo que cada espectador pudesse, que a saga prosseguia quando, por força de afazeres, entre a assistência alguém desarvorava. A cheirar a azeite. Terra, para ele a terra é também memória. Esta memória. Memória de este e outros odores, impregnados na carne. Rasto de vinho tinto e bagaço, na loja do Marcelino, no quelho. Aceno de eucalipto e mimosas na Escola Livre, quando os professores faltavam e a malta ia para ali jogar a bola. O cheiro a chuva, a chão molhado, a pão, a campos lavrados. A Primavera. Aroma de flor de laranjeira, tília, na avenida, no jardim. Um remoto fumo acre vindo da casa do ferrador, velho Pote, ferraduras em brasa a saltarem do lume, a afundarem-se, vigorosas, precisas, na pata dos bois, dos garranos. Terra, a sua terra, perfume de soalho lavado. Com sabão amarelo. Leite mungido, jacto fino, sonoro, apontado ao canado. Um sinal de café moído na loja do Cipriano Martins. Presença de castanha assada na esquina do Pintor, Casa D. Hóspedes, anunciada assim na parede. Zamacóis. Brisa de vitela assada no Pechão. Padas de Ul, inchadas padas de Ul com fiambre, aprontadas pelo senhor Augusto, no Flecha. Terra, a sua terra, cheiro velho a procissão. Pés penitentes a pisarem os verdes sobre a estrada, mulheres de mantilha preta, homens submissos, anjinhos imaculados, levados todos na cadência da banda, das orações, das velas tremeluzentes a agigantar a noite, as sombras, os medos.
     Terra, a sua terra, longínqua respiração. O hálito quente e bom do avô, do seu velho avô, no Inverno a bafejar-lhe o peito. A trespassar-lhe a roupa. A vazar o tempo.

Augusto Baptista


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