O Cachecol
Histórias de passagem - O cachecol
Quando ele chega àquele lugar, uma vaga impressão lhe diz já algum
dia por ali ter passado. Descobre breves sinais, um hálito a
lembrar-lhe espaço antigo e seu. Geografia indecisa entre o litoral e o íntimo dos montes, em redor
não se ouvem gaivotas, jamais por ali - inquire - se esgueiraram os
passos leves dos lobos. Improvável lugar. Vendo bem, outros bichos são presença rara nas ruas. E as pessoas
circulam, quase sempre de carro, por estradas decrépitas. De casa ao
emprego, ao mercado, ao café, tudo perto, raramente o fazem a pé. Estrangulam a entrada do cemitério com trânsito, buzinas. Como se o tempo tivesse ali importância. No jardim, árvores decapitadas, cicatrizes extensas. Noutras
paragens, mutilações e vegetais extermínios anunciam infeliz a gente
daquele lugar. Por tal haver consentido. Da pastelaria frente ao jardim, uma mulher se esvai na manhã. Cinge a carteira, enrola o cachecol ao pescoço, uma vez, outra vez,
outra vez, frenesim a raiar um desespero vermelho, a cor do casaco.
Ansioso, ele decide inquirir: - Desculpe, a senhora vai… vai suicidar-se nesta manhã regelada? Por Augusto Baptista •• ‘Ficções – Histórias de passagem’ é a nova secção semanal do jornal ‘A Voz de Azeméis’. O autor, Augusto Baptista, nasceu em Oliveira de
Azeméis. É um criador que reparte as suas ‘criaturas’ pela escrita,
pelo desenho e pela fotografia. Publicou, entre outros livros, ‘Histórias de Coisa Nenhuma e Outras
Pequenas Significâncias’, ‘Floripes Negra’, ‘Elucidário Oblíquo do
Reino dos Bichos’, ‘O Caçador de Luas’ e, com Francisco Duarte Mangas,
‘O Medo Não Podia Ter Tudo’.