Sinfonia muda
O violino flutua entre o trânsito parado nos
semáforos da Avenida Sidónio Pais, no Porto. O homem, pose musical, agita o
arco do instrumento, mão à altura do queixo. E sorri, sorri muito, rente aos
vidros e aos condutores, uns e outros fechados quase sempre.
No sufoco dos motores a trabalhar, a música é uma
cara a sorrir, a sorrir muito, violino no queixo; e uma mâo, gestos divididos
entre a dádiva sinfónica e a súplica.
Desponta o verde, os carros arrancam com fumarada,
o tocador salta para a berma, a sorrir, a sorrir muito. Entre os dedos leva uma
ou outra moeda, a renda da investida. E volta ao ponto inicial, violino
preparado para mais uma sinfonia muda.
É condenável este assalto ao trânsito, que já
determinou até intervenção policial, oiço dizer. Pelo meu lado, avalio o caso
pelo ângulo da eficácia. Vistas as coisas assim, preferível seria o uso de
outro instrumento: um bombo. Para que alguém oiça os problemas à nossa volta.
AB
In Notícias
Magazine n.º 523 – 2 de Jun 2002