Ah, Porto!
O Porto é uma cidade com um não sei quê de
diferente e, na escrita, um espanto. Aqui se recebem lições de heterografia (e
de muita humanidade). 1
Texto de Augusto Baptista
Casas, gente, ruas, trânsito: são as cidades. Nisso
todas são iguais. O desafio está em encontrar as diferenças, desvendar as
impressões digitais de cada uma, partir à descoberta, mesmo quando se fica.
Sempre que posso perco-me no Porto. Entrego-me à
cidade sem reservas. Devagarinho, sem destino nem norte, deixo-me escorregar
pelo corpo gasto das calçadas e parto na maresia das asas das gaivotas.
Aprendi o acordar estremunhado da cidade: manhãs de
mil olhos piscos a mirar o Douro, entre cortinas de névoa. Sei-lhe o jeito de
estar acocorada à beira-rio, corpo estendido em ondas de preguiça até ao mar.
Não estranho o pé descalço, o umbigo ao léu, a fome
de pão deste Porto-criança. E, depois, quem sou eu para lhe censurar o tropeço
no copo, lhe reprimir o beliscão travesso nas Fontaínhas, na noite de S. João?
O Porto é isto: “Compoi-se guardachuvas amola-se
facas-tesouras”. Leio, enquadro, fotografo. E quase me comovo. Em que outro
lugar, em que cidade outra, onde mais encontrar um letreiro paralelo? E o
grafismo de rodapé? Quantas interrogações num só quadro?
“Prigo com os caés”. Uma aventura de alto risco ao
pé da porta, este lugar. Olho em redor: não há “prigo”, não há “caés”, só
tabuleta. Quando, para quê, com que ganas de certeza, que mão verteu aquele “é”
nos “cães”? E “é” em cor diferente, “é” em azul porquê?
O Porto é inesperado pedido em casamento aberto à
praça pública: “Precisa-se de senhora de 40 a 60 anos, livre e sem encargos
familiares para casamento. Falar com o proprietário desta casa, n.º 57, 3.º
andar – telef. 310335, das 8 às 10 horas, das 12 às 14 e das 17 às 21 h”. É a cidade
do “Vende-se bixa”, do “Por favor deixem a entrada libre”, do “Coellho da China”,
das “Tripas há moda do Porto”. Por falar em tripas, onde se esconde o segredo
culinário das ditas? No agá do há?
Por linhas tortas, se escreve direito, no Porto. Como
não gostar de uma cidade assim?
1 In
revista Sábado n.º 92, 24 de Março de 1990 (com tópicas alterações de forma)