Cándido Pazó
Cándido
Pazó 1
— a
palavra
Texto de Augusto Baptista
Si he sufrido la sed, el hambre, todo
lo que era mío y resultó ser nada,
si he segado las sombras en silencio,
me queda la palabra.
Blas de Otero
in En el principio
No
sossego de uma moradia do pacato bairro Norton de Matos, em Coimbra, sala
luminosa, olhar debruçado sobre o novo estádio de futebol da Académica, a
entrevista com Cándido Pazó: momento para desvendar segredos sobre o ofício de
contar, espaço para falar das palavras. Da palavra.
A
abrir a conversa, surpresa rouca, o ruído do motor de um frigorífico!
Cándido
Pazó — Penso um dia escrever sobre este barulho...
cenaberta — Curioso, ontem um
motorista de táxi falava-me, com nostalgia, do som da chuva a bater nas telhas
da sua velha casa de infância. Ao ouvi-lo, ocorreu-me o ping! ping! da goteira
a cair na lata: o soporífero dos pobres. Espantosa é a memória sonora, a marca
que nos deixam estes sons. Sons; que não ruídos.
Cândido
Pazó — Mas o frígorífico...
cenaberta — O frígorífico é
fantasmagórico. Brrrrrrr... Até por estar a fazer uma coisa que, quando se está
sozinho, se tem em excesso: frio. A solidão é gelada. Como as trevas. Por isso
reclamas luz nas tuas intervenções. Luz, para ver os olhos do público.
Cândido
Pazó — Contar histórias é conversar. Pode-se
conversar às escuras, mas esse é outro tipo de conversa. No meu caso, preciso
de ver os espectadores. É muito importante saber como reage quem me escuta.
Isso pressupõe também proximidade.
O
melhor é isso. Mas às vezes não se consegue. Trabalhei na rádio, contei
histórias na televisão. O ideal é estar o mais perto possível e ter um
auditório não muito grande... Claro, enquanto profissional, tanto participas em
eventos com sessenta, como com seiscentos espectadores.
Nas tuas actuações, verifiquei, tens
um contacto quase físico com as pessoas.
Depende
das condições, do público. Quando há cinquenta espectadores, o contacto físico
não é imperativo: embora a vista seja já contacto físico. Agora, quando há
muita gente e há o perigo de dispersão, tens de apanhar os espectadores com a
mão, interpelá-los a meio metro de distância. A vista não chega. Tens de lançar
cordas, cabos para amarrar o barco da comunicação. Se permites dispersão, não
podes voltar atrás.
Um tanto como no namoro, se há
ruptura é difícil reatar.
É
possível, mas requer uma energia especial. Muitas vezes uma energia louca.
Quando estamos a recuperar uma relação, como a do namoro, fazemos muitas
parvoíces. Também quando se está a contar uma história e se rompe a relação, no
desespero, podes fazer disparates, dizer coisas parvas.
Para chamar a atenção de quem te vê e
ouve usas como objecto-âncora um escadote. Tu próprio te apresentas com uma
camisa vermelha. Isso é por acaso?
Não,
não. Isso tem razão de ser. Quando comecei a contar histórias, apresentava-me
como calhava. Depois pensei: isto é uma arte cénica, é palavra cénica. Palavra
natural, palavra directa, mas é cénica, a actividade. Então, eu, portador de
signos visuais, vou vestir-me como? A primeira ideia foi vestir-me de preto,
por ser uma cor neutra, que acentua a importância do rosto, das mãos. É normal,
no palco, ver músicos e artistas vestidos de preto. Mas, como eu actuava muito
em bares mal iluminados, comecei a notar que visualmente me perdia. Decidi adoptar
o vermelho, também em homenagem a um cómico espanhol muito importante, falecido
há dois anos: Miguel Gila.
Gila?
Miguel
Gila era um excelente cómico e um homem íntegro. Soldado do exército
republicano, foi aprisionado e fuzilado, juntamente com mais 20 ou 30
companheiros. Mas fuzilaram-no mal e, como ele dizia, tinha tão pouca
importância que ninguém foi verificar se estava mesmo morto. Gila transformou
esta história trágica num caso cómico. Ora ele trabalhava de vermelho e, quando
morreu, decidi-me por esta cor.
No caso de Miguel Gila, admito, o
vermelho era bandeira.
Também.
E um modo de individualização. Há duas semanas eu estava a trabalhar no fórum
de Barcelona, partilhando o palco com um grupo de flamenco, todo vestido de
preto. Se me apresentasse de preto, não me distinguiria. Ora Gila, que
trabalhou muito em bares, locais nocturnos, talvez tenha chegado à mesma
conclusão. E optou pelo vermelho, cor que, nos anos 50, 60, realmente era um
bocadinho provocatória.
Sendo que, entretanto, vermelha é a
cor da capa dos toureiros...
E
da camisola da selecção nacional de futebol. Sempre foi vermelha. Mas, se
calhar, no mundo do espectáculo, não será corrente o uso do vermelho. Não sei.
De qualquer modo, no meu caso, há uma questão visual e um lado de homenagem.
Concluindo: a questão da cor não é gratuita. Entrar no quarto meia hora antes
do espectáculo, tirar a roupa normal, vestir a camisa vermelha... É como o
padre quando se prepara para rezar a missa.
Ou o toureiro, antes de entrar em
cena.
Para
o toureiro, é uma cerimónia intensa. No meu caso, é só vestir uma camisa.
Mas com carga ritual. Antes dos
espectáculos, vejo-te circunspecto, às voltas, ar de quem sabe que breve vai
correr riscos.
Nesses
momentos procuro antecipar o modo como decorrerá a acção, a possível reacção do
público. O que se vai passar aqui? Esta gente estará com vontade de me escutar?
Como vou fazer? Na minha actuação de ontem no palácio de S. Marcos, para os
congressistas do fórum de Ciências Socias, eu tinha várias histórias na cabeça.
Uma falava de Castelao, um homem da cultura, da política, referência histórica
galega, muito conhecido no mundo da Sociologia. E havia outras. Mas qual? Então
eu estive a observar e, já que estamos numa de toureio, perguntava-me, vou sair
à praça e como vou lidar?
Foste atrevido. Escolheste uma
história dir-se-ia em contradição com o universo académico, o ambiente grave,
os grandes cadeirões do palácio, varandim de pedra impregnado de monarquia...
A
questão é: vou trabalhar contra ou a favor da corrente? As duas hipóteses podem
funcionar, mas eu só decidi contar aquilo no momento em que o António Augusto
Barros estava a fazer a apresentação. Só aí verifiquei que a desconcentração
era muita. Então pensei: há que fazer tratamento de choque, ir ao contrário,
apanhar o pessoal não pelo direito, pelo avesso.
Quer dizer, decidiste tudo à última
hora?
Já
tinha admitido ir por aí, mas só quando assistia à apresentação determinei o
caminho. Eu podia contar a história do
Castelao, muito bonita, delicada, ir a favor do público. Mas peguei numa ementa
do jantar e...
... E começaste de improviso, lendo a
ementa, introduzindo a história. Isto leva-me a supor que tu, homem de texto,
do apuro da palavra, da depuração narrativa, da escrita!, na vertigem da acção
assumes o inesperado, deixas-te tentar pelo risco.
As
duas coisas estão intimamente relacionadas. Só podes improvisar quando dispões
de uma estrutura firme, conhecida, segura. Aí podes lançar-te à aventura,
cruzar os mares, sem medo, porque sabes que, se te perderes, tens salvação. No
meu caso, quanto mais sei a história, mais improviso. Eu comparo isto ao jazz:
os músicos fazem improvisação, mas conhecem muito bem a estrutura. Não
inventam.
Neste jogo, não corres o risco de um
dia meteres os pés pelas mãos, te baralhares?
Tenho,
digamos, uma marca própria. Saio do caminho principal, entro em vias
secundárias, mas sinalizei o ponto de saída. E assim não me perco. Estou a
dizer, sei lá, Então o homem ia no
autocarro... Nesta altura, posso improvisar uma qualquer outra situação. Na
minha cabeça sinalizei a palavra autocarro
e, na hora de voltar ao fluxo narrativo principal, retomo Neste autocarro...
Até chegares ao apuro de recursos e
truques, há um trajecto; que começa quando e como?
Sou
um homem de Teatro. A partir de 1989, já escrevia teatro, fazia encenações.
Depois, sempre fui um conversador. Gostava de contar histórias, sem o mínimo
projecto profissional, sem sequer saber que havia essa possibilidade. Quando o
Quico Cadaval estava a trabalhar em Madrid, encontrou muitos sul-americanos
contadores de histórias, nomeadamente columbianos (na Colômbia, cuenteroé uma profissão normal,
reconhecida). O Quico gostou daquilo, voltou para a Galiza e montou o
espectáculo Falar por falar. O
sucesso foi grande, o que o levou a pensar numa dinâmica contista na Galiza.
Desafiou-me e, um dia, no final de um espectáculo, chamou-me ao palco para eu
contar uma história. Foi o começo. Hoje trabalho mais a contar histórias do que
no teatro. Embora continue a fazer teatro, a escrever.
Esta primeira intervenção pela mão do
Quico Cadaval foi onde?
Em
Santiago de Compostela, no ano de 1996. Depois, durante muito tempo, fiz aí a
estreia de novas histórias, apresentei novas estruturas, apurei caminhos,
formas, ritmos. As histórias não podem ser, como no teatro, ensaiadas dentro de
portas. Tudo tem de ser provado com o público. Normalmente fazia isso num bar
de Santiago.
Onde levavas e colhias histórias.
Muitas
verídicas, em redor da guerra, seus horrores e cicatrizes. Como a de uma senhora
idosa, que, na década de 60, ia a casa de velhos falangistas, à hora da morte.
Eles na agonia, com padre, mulheres a rezar, homens ao alto, ela entrava
vestida de preto, pesarosa, ia à cabeceira do moribundo, ao ouvido, Tu mataste fulano, em tal sítio. Mataste
mais não sei quem, além. Mataste... Isto na justa hora em que o homem ia
prestar contas ao Altíssimo! Morriam no mais absoluto retorcimento.
Esta é uma história forte, a suscitar
muita narrativa.
Claro,
tu podes recriar a história desta velha, alongá-la, dizeres que ela tinha uma
cabra, uma chibinha, construir um caminho, decidir um final. Mas, para chegar a
um resultado, necessito de um público cúmplice que me permita testar soluções.
E isto não pode ser feito em qualquer lugar, com um público qualquer.
Este caso, que ainda estou a digerir,
atravessado pelo universo cruel da guerra, permite construir histórias que
abanam consciências, desvendar os alicerces da Galiza, as contradições. Isto
significa dizer que tens grande margem de intervenção ideológica.
Eu
e o Quico somos filhos do que chamam em Espanha Teatro Independente, iniciado
nos anos 60, 70, em contestação ao teatro comercial que se fazia então em
Madrid ou Barcelona. O Teatro Independente assumia-se contra a ditadura, a
favor da amnistia dos presos políticos, da liberdade. Esta herança estruturou a
nossa forma de ser e de fazer. Sou um homem de esquerda, preocupado com a
actualidade galega, espanhola e mundial. Mas isto não é algo que eu tenha de
reflectir muito na hora de contar. Também não tenho a intenção... Eu gosto de
contar histórias... A que contei ontem no Palácio de S. Marcos é um bom
exemplo.
A história corrosiva de um peido,
contada a académicos, cientistas sociais...
Numa
cota elementar de recepção, esta é simplesmente a história de um peido e suas
consequências. Mas ali reivindico a memória, falo de emigração, do
desenraízamento, do retorno, do reencontro com uma nova paisagem, outra
realidade... Mesmo assim, num momento dado, achei que a história terminava com
pouca consistência. Foi quando inventei o estrambote
final, o remate, concluindo que somos todos muito parecidos nas coisas de
cagar, mas temos de passar a ser mais iguais nas coisas de comer. Confesso que
fiquei muito satisfeito por ter sido capaz de dar sentido a toda aquela festa
da palavra, do humor.
A história chama-se?
O peido de Abelardo, o Caruncho.
Pelo que percebi, as tuas histórias
são uma espécie de acordeão que esticas mais ou menos, conforme a música que
queres tocar. E te reclamam.
Por
vezes tens de fazer a música que o público pede, sem o saber. Isto passa-se
muito nas escolas do ensino secundário. Tens de conquistar esse público jovem,
de 15, 16, 17 anos, dando-lhe coisas que parecem não lhe interessar: a beleza
da palavra, o humor inteligente. Daí a conclusão de que se pode trabalhar a
favor do público, mas nunca superficialmente. Há que ir além das aparências,
sondar em profundidade.
Naquilo a que se pode chamar a tua
bagagem profissional, carregas quantas histórias?
Umas
trinta. Mas trinta histórias modulares. Quer dizer, histórias compostas por
módulos intercambiáveis. Eu tenho um módulo que faz parte desta história, mas
que me faz falta noutra, por razões determinadas: transfiro.
É um puzzle que constróis às vezes
mesmo na hora, no acto de contar?
Sim.
Por exemplo, estou a contar a história delicada de alguém que leva um ramo de
flores à amada. Chegado aqui, noto que preciso de mais energia para captar o
público e poder continuar. Recorro então à história de um fulano ecologista que
levava flores à namorada, mas que as apanhava no cemitério, flores de enterro,
que ele assim reciclava. O público ri, está reposta a energia, posso continuar.
Uma das tuas preocupações é o ritmo.
O
ritmo energético.
Mas, na história do Abelardo que
ontem contaste, o registo narrativo foi sempre muito intenso, agressivo.
Ontem,
se quiseres, foi especial. Foi um bocado eléctrico. E foi assim por ter
concluído que, naquele contexto, se eu não fosse eléctrico aquilo perdia-se.
Não tem de ser sempre assim, nem sempre é assim. Desejável é que a narrativa
seja como num bolo: com creme, nozes, biscoito... Há que misturar. Num ambiente
normal, devem-se criar contrastes, falar baixinho e tal. Talvez me tenha
enganado, mas ontem achei que precisava de rédea curta. O público não me
conhecia e, quando é assim, é ele o dono do ritmo e do tempo. Nestas condições,
não navegas, é o mar que te leva.
As tuas actuações estão centradas na
Galiza?
Eu
trabalho muito na Galiza e em toda a Espanha, sobretudo a Norte. E todos os
anos, ou de dois em dois anos, vou à Venezuela, Argentina, Colômbia. E agora
vou ao Chile. Para além do espaço hispânico, tenho também o espaço da
lusofonia... Estou, como nós dizemos na Galiza, escarrachado, uma perna aqui e
outra lá. Sinto-me natural dos dois mundos.
Nos países de Língua Portuguesa, para
além de Portugal, estiveste onde?
São
Tomé e Príncipe.
E como correram aí as coisas?
Houve
duas actuações. A primeira foi num imenssíssimo cinema em São Tomé. Aí foi
difícil. A palavra tem a sua dimensão. É muito potente, mas é frágil. Não pode
ser levada a um teatro de mil lugares, sem apoio sonoro, sem ambiente, com
gente a entrar e a sair. A segunda foi no Príncipe. Ali o espaço era apropriado
e o público, para além de pessoas da terra, diversificado: brasileiros,
angolanos, portugueses, guineenses... Havia muita gente e correu muito bem, com
comunicação.
Achas que estas experiências da Cena
introduzem mais valia no teu trabalho?
Tudo
é um somatório. A primeira vez que actuei em Portugal foi aqui em Coimbra num
evento chamado Os contos outrora, agora,
uma espécie de congresso sobre a narrativa oral, os velhos contos populares.
Era um contexto muito universitário. Depois fui solicitado pela Universidade do
Minho. As coisas correram bem e agora, desde há dois anos, dirijo uma acção de
formação no ESMAE (Escola Superior de Música e Artes do Espectáculo), no Porto.
Isto é uma via. A outra é a Cena Lusófona, a partir da ida a São Tomé e
Príncipe. Enfim, aos poucos e como uma mancha de óleo, vais alastrando...
Isso significa boas perspectivas para
as histórias, para os contadores, para a palavra?
Se
a pergunta me fosse feita há uns anos, não saberia responder. Hoje, vendo que
cada vez mais se estruturam os circuitos, cada vez mais se abrem caminhos,
crescem os contratantes, estou optimista. Tal qual Blas de Otero, poeta social
espanhol, acredito na palavra: último reduto, abrigo, barricada. A fascinante
matéria-prima com que trabalho. •
1 In cenaberta n.º 3 –
Dezembro de 2004
Cándido Pazó
— perfil breve
candidopazo@tiscali.es
Nasceu
em Vigo, 1960, reside em Santiago de Compostela, Galiza. Formação universitária
na área da Filologia Galego-Portuguesa. Contador de histórias. Actor (Teatro de Adro e Ollomoltranvia). Dramaturgo, publicou: O melro branco; Raiñas de Pedra;
Commedia, un xoguete para Goldoni; O bululu do linier; Ñiqui-Ñaque; O Rei Nu. •