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repórter
10 octobre 2006

Cándido Pazó

Cándido Pazó 1

— a palavra

 

Texto de Augusto Baptista

Si he sufrido la sed, el hambre, todo

lo que era mío y resultó ser nada,

si he segado las sombras en silencio,

me queda la palabra.

 

Blas de Otero

in En el principio

 

 

No sossego de uma moradia do pacato bairro Norton de Matos, em Coimbra, sala luminosa, olhar debruçado sobre o novo estádio de futebol da Académica, a entrevista com Cándido Pazó: momento para desvendar segredos sobre o ofício de contar, espaço para falar das palavras. Da palavra.

A abrir a conversa, surpresa rouca, o ruído do motor de um frigorífico!

 

Cándido Pazó — Penso um dia escrever sobre este barulho...

 

cenaberta — Curioso, ontem um motorista de táxi falava-me, com nostalgia, do som da chuva a bater nas telhas da sua velha casa de infância. Ao ouvi-lo, ocorreu-me o ping! ping! da goteira a cair na lata: o soporífero dos pobres. Espantosa é a memória sonora, a marca que nos deixam estes sons. Sons; que não ruídos.

Cândido Pazó — Mas o frígorífico...

 

cenaberta — O frígorífico é fantasmagórico. Brrrrrrr... Até por estar a fazer uma coisa que, quando se está sozinho, se tem em excesso: frio. A solidão é gelada. Como as trevas. Por isso reclamas luz nas tuas intervenções. Luz, para ver os olhos do público.

Cândido Pazó  — Contar histórias é conversar. Pode-se conversar às escuras, mas esse é outro tipo de conversa. No meu caso, preciso de ver os espectadores. É muito importante saber como reage quem me escuta.

 

Isso pressupõe também proximidade.

O melhor é isso. Mas às vezes não se consegue. Trabalhei na rádio, contei histórias na televisão. O ideal é estar o mais perto possível e ter um auditório não muito grande... Claro, enquanto profissional, tanto participas em eventos com sessenta, como com seiscentos espectadores.

 

Nas tuas actuações, verifiquei, tens um contacto quase físico com as pessoas.

Depende das condições, do público. Quando há cinquenta espectadores, o contacto físico não é imperativo: embora a vista seja já contacto físico. Agora, quando há muita gente e há o perigo de dispersão, tens de apanhar os espectadores com a mão, interpelá-los a meio metro de distância. A vista não chega. Tens de lançar cordas, cabos para amarrar o barco da comunicação. Se permites dispersão, não podes voltar atrás.

 

Um tanto como no namoro, se há ruptura é difícil reatar.

É possível, mas requer uma energia especial. Muitas vezes uma energia louca. Quando estamos a recuperar uma relação, como a do namoro, fazemos muitas parvoíces. Também quando se está a contar uma história e se rompe a relação, no desespero, podes fazer disparates, dizer coisas parvas.

 

Para chamar a atenção de quem te vê e ouve usas como objecto-âncora um escadote. Tu próprio te apresentas com uma camisa vermelha. Isso é por acaso?

Não, não. Isso tem razão de ser. Quando comecei a contar histórias, apresentava-me como calhava. Depois pensei: isto é uma arte cénica, é palavra cénica. Palavra natural, palavra directa, mas é cénica, a actividade. Então, eu, portador de signos visuais, vou vestir-me como? A primeira ideia foi vestir-me de preto, por ser uma cor neutra, que acentua a importância do rosto, das mãos. É normal, no palco, ver músicos e artistas vestidos de preto. Mas, como eu actuava muito em bares mal iluminados, comecei a notar que visualmente me perdia. Decidi adoptar o vermelho, também em homenagem a um cómico espanhol muito importante, falecido há dois anos: Miguel Gila.

 

Gila?

Miguel Gila era um excelente cómico e um homem íntegro. Soldado do exército republicano, foi aprisionado e fuzilado, juntamente com mais 20 ou 30 companheiros. Mas fuzilaram-no mal e, como ele dizia, tinha tão pouca importância que ninguém foi verificar se estava mesmo morto. Gila transformou esta história trágica num caso cómico. Ora ele trabalhava de vermelho e, quando morreu, decidi-me por esta cor.

 

No caso de Miguel Gila, admito, o vermelho era bandeira.

Também. E um modo de individualização. Há duas semanas eu estava a trabalhar no fórum de Barcelona, partilhando o palco com um grupo de flamenco, todo vestido de preto. Se me apresentasse de preto, não me distinguiria. Ora Gila, que trabalhou muito em bares, locais nocturnos, talvez tenha chegado à mesma conclusão. E optou pelo vermelho, cor que, nos anos 50, 60, realmente era um bocadinho provocatória.

 

Sendo que, entretanto, vermelha é a cor da capa dos toureiros...

E da camisola da selecção nacional de futebol. Sempre foi vermelha. Mas, se calhar, no mundo do espectáculo, não será corrente o uso do vermelho. Não sei. De qualquer modo, no meu caso, há uma questão visual e um lado de homenagem. Concluindo: a questão da cor não é gratuita. Entrar no quarto meia hora antes do espectáculo, tirar a roupa normal, vestir a camisa vermelha... É como o padre quando se prepara para rezar a missa.

 

Ou o toureiro, antes de entrar em cena.

Para o toureiro, é uma cerimónia intensa. No meu caso, é só vestir uma camisa.

 

Mas com carga ritual. Antes dos espectáculos, vejo-te circunspecto, às voltas, ar de quem sabe que breve vai correr riscos.

Nesses momentos procuro antecipar o modo como decorrerá a acção, a possível reacção do público. O que se vai passar aqui? Esta gente estará com vontade de me escutar? Como vou fazer? Na minha actuação de ontem no palácio de S. Marcos, para os congressistas do fórum de Ciências Socias, eu tinha várias histórias na cabeça. Uma falava de Castelao, um homem da cultura, da política, referência histórica galega, muito conhecido no mundo da Sociologia. E havia outras. Mas qual? Então eu estive a observar e, já que estamos numa de toureio, perguntava-me, vou sair à praça e como vou lidar?

 

Foste atrevido. Escolheste uma história dir-se-ia em contradição com o universo académico, o ambiente grave, os grandes cadeirões do palácio, varandim de pedra impregnado de monarquia...

A questão é: vou trabalhar contra ou a favor da corrente? As duas hipóteses podem funcionar, mas eu só decidi contar aquilo no momento em que o António Augusto Barros estava a fazer a apresentação. Só aí verifiquei que a desconcentração era muita. Então pensei: há que fazer tratamento de choque, ir ao contrário, apanhar o pessoal não pelo direito, pelo avesso.

 

Quer dizer, decidiste tudo à última hora?

Já tinha admitido ir por aí, mas só quando assistia à apresentação determinei o caminho. Eu podia contar a história do Castelao, muito bonita, delicada, ir a favor do público. Mas peguei numa ementa do jantar e...

 

... E começaste de improviso, lendo a ementa, introduzindo a história. Isto leva-me a supor que tu, homem de texto, do apuro da palavra, da depuração narrativa, da escrita!, na vertigem da acção assumes o inesperado, deixas-te tentar pelo risco.

As duas coisas estão intimamente relacionadas. Só podes improvisar quando dispões de uma estrutura firme, conhecida, segura. Aí podes lançar-te à aventura, cruzar os mares, sem medo, porque sabes que, se te perderes, tens salvação. No meu caso, quanto mais sei a história, mais improviso. Eu comparo isto ao jazz: os músicos fazem improvisação, mas conhecem muito bem a estrutura. Não inventam.

 

Neste jogo, não corres o risco de um dia meteres os pés pelas mãos, te baralhares?

Tenho, digamos, uma marca própria. Saio do caminho principal, entro em vias secundárias, mas sinalizei o ponto de saída. E assim não me perco. Estou a dizer, sei lá, Então o homem ia no autocarro... Nesta altura, posso improvisar uma qualquer outra situação. Na minha cabeça sinalizei a palavra autocarro e, na hora de voltar ao fluxo narrativo principal, retomo Neste autocarro...

 

Até chegares ao apuro de recursos e truques, há um trajecto; que começa quando e como?

Sou um homem de Teatro. A partir de 1989, já escrevia teatro, fazia encenações. Depois, sempre fui um conversador. Gostava de contar histórias, sem o mínimo projecto profissional, sem sequer saber que havia essa possibilidade. Quando o Quico Cadaval estava a trabalhar em Madrid, encontrou muitos sul-americanos contadores de histórias, nomeadamente columbianos (na Colômbia, cuenteroé uma profissão normal, reconhecida). O Quico gostou daquilo, voltou para a Galiza e montou o espectáculo Falar por falar. O sucesso foi grande, o que o levou a pensar numa dinâmica contista na Galiza. Desafiou-me e, um dia, no final de um espectáculo, chamou-me ao palco para eu contar uma história. Foi o começo. Hoje trabalho mais a contar histórias do que no teatro. Embora continue a fazer teatro, a escrever.

 

Esta primeira intervenção pela mão do Quico Cadaval foi onde?

Em Santiago de Compostela, no ano de 1996. Depois, durante muito tempo, fiz aí a estreia de novas histórias, apresentei novas estruturas, apurei caminhos, formas, ritmos. As histórias não podem ser, como no teatro, ensaiadas dentro de portas. Tudo tem de ser provado com o público. Normalmente fazia isso num bar de Santiago.

 

Onde levavas e colhias histórias.

Muitas verídicas, em redor da guerra, seus horrores e cicatrizes. Como a de uma senhora idosa, que, na década de 60, ia a casa de velhos falangistas, à hora da morte. Eles na agonia, com padre, mulheres a rezar, homens ao alto, ela entrava vestida de preto, pesarosa, ia à cabeceira do moribundo, ao ouvido, Tu mataste fulano, em tal sítio. Mataste mais não sei quem, além. Mataste... Isto na justa hora em que o homem ia prestar contas ao Altíssimo! Morriam no mais absoluto retorcimento.

 

Esta é uma história forte, a suscitar muita narrativa.

Claro, tu podes recriar a história desta velha, alongá-la, dizeres que ela tinha uma cabra, uma chibinha, construir um caminho, decidir um final. Mas, para chegar a um resultado, necessito de um público cúmplice que me permita testar soluções. E isto não pode ser feito em qualquer lugar, com um público qualquer.

 

Este caso, que ainda estou a digerir, atravessado pelo universo cruel da guerra, permite construir histórias que abanam consciências, desvendar os alicerces da Galiza, as contradições. Isto significa dizer que tens grande margem de intervenção ideológica.

Eu e o Quico somos filhos do que chamam em Espanha Teatro Independente, iniciado nos anos 60, 70, em contestação ao teatro comercial que se fazia então em Madrid ou Barcelona. O Teatro Independente assumia-se contra a ditadura, a favor da amnistia dos presos políticos, da liberdade. Esta herança estruturou a nossa forma de ser e de fazer. Sou um homem de esquerda, preocupado com a actualidade galega, espanhola e mundial. Mas isto não é algo que eu tenha de reflectir muito na hora de contar. Também não tenho a intenção... Eu gosto de contar histórias... A que contei ontem no Palácio de S. Marcos é um bom exemplo.

 

A história corrosiva de um peido, contada a académicos, cientistas sociais...

Numa cota elementar de recepção, esta é simplesmente a história de um peido e suas consequências. Mas ali reivindico a memória, falo de emigração, do desenraízamento, do retorno, do reencontro com uma nova paisagem, outra realidade... Mesmo assim, num momento dado, achei que a história terminava com pouca consistência. Foi quando inventei o estrambote final, o remate, concluindo que somos todos muito parecidos nas coisas de cagar, mas temos de passar a ser mais iguais nas coisas de comer. Confesso que fiquei muito satisfeito por ter sido capaz de dar sentido a toda aquela festa da palavra, do humor.

 

A história chama-se?

O peido de Abelardo, o Caruncho.

 

Pelo que percebi, as tuas histórias são uma espécie de acordeão que esticas mais ou menos, conforme a música que queres tocar. E te reclamam.

Por vezes tens de fazer a música que o público pede, sem o saber. Isto passa-se muito nas escolas do ensino secundário. Tens de conquistar esse público jovem, de 15, 16, 17 anos, dando-lhe coisas que parecem não lhe interessar: a beleza da palavra, o humor inteligente. Daí a conclusão de que se pode trabalhar a favor do público, mas nunca superficialmente. Há que ir além das aparências, sondar em profundidade.

 

Naquilo a que se pode chamar a tua bagagem profissional, carregas quantas histórias?

Umas trinta. Mas trinta histórias modulares. Quer dizer, histórias compostas por módulos intercambiáveis. Eu tenho um módulo que faz parte desta história, mas que me faz falta noutra, por razões determinadas: transfiro.

 

É um puzzle que constróis às vezes mesmo na hora, no acto de contar?

Sim. Por exemplo, estou a contar a história delicada de alguém que leva um ramo de flores à amada. Chegado aqui, noto que preciso de mais energia para captar o público e poder continuar. Recorro então à história de um fulano ecologista que levava flores à namorada, mas que as apanhava no cemitério, flores de enterro, que ele assim reciclava. O público ri, está reposta a energia, posso continuar.

 

Uma das tuas preocupações é o ritmo.

O ritmo energético.

 

Mas, na história do Abelardo que ontem contaste, o registo narrativo foi sempre muito intenso, agressivo.

Ontem, se quiseres, foi especial. Foi um bocado eléctrico. E foi assim por ter concluído que, naquele contexto, se eu não fosse eléctrico aquilo perdia-se. Não tem de ser sempre assim, nem sempre é assim. Desejável é que a narrativa seja como num bolo: com creme, nozes, biscoito... Há que misturar. Num ambiente normal, devem-se criar contrastes, falar baixinho e tal. Talvez me tenha enganado, mas ontem achei que precisava de rédea curta. O público não me conhecia e, quando é assim, é ele o dono do ritmo e do tempo. Nestas condições, não navegas, é o mar que te leva.

 

As tuas actuações estão centradas na Galiza?

Eu trabalho muito na Galiza e em toda a Espanha, sobretudo a Norte. E todos os anos, ou de dois em dois anos, vou à Venezuela, Argentina, Colômbia. E agora vou ao Chile. Para além do espaço hispânico, tenho também o espaço da lusofonia... Estou, como nós dizemos na Galiza, escarrachado, uma perna aqui e outra lá. Sinto-me natural dos dois mundos.

 

Nos países de Língua Portuguesa, para além de Portugal, estiveste onde?

São Tomé e Príncipe.

 

E como correram aí as coisas?

Houve duas actuações. A primeira foi num imenssíssimo cinema em São Tomé. Aí foi difícil. A palavra tem a sua dimensão. É muito potente, mas é frágil. Não pode ser levada a um teatro de mil lugares, sem apoio sonoro, sem ambiente, com gente a entrar e a sair. A segunda foi no Príncipe. Ali o espaço era apropriado e o público, para além de pessoas da terra, diversificado: brasileiros, angolanos, portugueses, guineenses... Havia muita gente e correu muito bem, com comunicação.

 

Achas que estas experiências da Cena introduzem mais valia no teu trabalho?

Tudo é um somatório. A primeira vez que actuei em Portugal foi aqui em Coimbra num evento chamado Os contos outrora, agora, uma espécie de congresso sobre a narrativa oral, os velhos contos populares. Era um contexto muito universitário. Depois fui solicitado pela Universidade do Minho. As coisas correram bem e agora, desde há dois anos, dirijo uma acção de formação no ESMAE (Escola Superior de Música e Artes do Espectáculo), no Porto. Isto é uma via. A outra é a Cena Lusófona, a partir da ida a São Tomé e Príncipe. Enfim, aos poucos e como uma mancha de óleo, vais alastrando...

 

Isso significa boas perspectivas para as histórias, para os contadores, para a palavra?

Se a pergunta me fosse feita há uns anos, não saberia responder. Hoje, vendo que cada vez mais se estruturam os circuitos, cada vez mais se abrem caminhos, crescem os contratantes, estou optimista. Tal qual Blas de Otero, poeta social espanhol, acredito na palavra: último reduto, abrigo, barricada. A fascinante matéria-prima com que trabalho. •

 

1 In cenaberta n.º 3 – Dezembro de 2004

 

 

Cándido Pazó

— perfil breve 

candidopazo@tiscali.es

Nasceu em Vigo, 1960, reside em Santiago de Compostela, Galiza. Formação universitária na área da Filologia Galego-Portuguesa. Contador de histórias. Actor (Teatro de Adro e Ollomoltranvia). Dramaturgo, publicou: O melro branco; Raiñas de Pedra; Commedia, un xoguete para Goldoni; O bululu do linier; Ñiqui-Ñaque; O Rei Nu. 

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