10 octobre 2006
Mestre Pedrosa
A
vida dos homens, podendo animar longos romances, cabe quase sempre em poucas
palavras. No caso de mestre Pedrosa, bastam duas: trabalho, honradez. Para o
retrato ficar completo, só mais um pormenor: é sogro da Rosa Mota.
Fotografia
e texto
Augusto
Baptista
«Gosto
dela como pessoa e como família. Não distingo a Rosa das minhas filhas». Vindo
de quem vem, o alcandorar de Rosa Mota ao pódio familiar dos Pedrosas equivale
a uma medalha olímpica.
Mestre
Pedrosa é um apaixonado pelas filhas, pelo filho. Tem orgulho neles.
Incendeiam-se-lhe os olhos quando fala da Assunção, professora da Faculdade de
Letras do Porto, da Manuela, licenciada em arqueologia e educadora infantil, do
Zé. «Esse toda a gente o conhece»: é o José Pedrosa, médico, companheiro de
andanças de Rosa Mota, no desporto e na vida. E é para ela, para a nora-filha,
que vai o desvelo final: «Ainda há bocado me telefonou. É boa pessoa,
respeitadeira. E não é sovina».
A
temperar o ferro, a esmerilar o aço, foi assim que António Pinto Pedrosa de
Araújo, 84 anos ainda agarrados ao verbo, ganhou o pão, formou os filhos. Feita
a 4.ª classe e depois de curta passagem pela Escola Faria Guimarães, no Porto,
começou a acompanhar o pai no trabalho da forja, na Rua do Bolhão, «tinha então
11 anos, praticamente».
Deste
modo, o miúdo Pedrosa, nascido em Vilar de Andorinho, Gaia, em 1917, «tempo de
Fátima e da revolução soviética, quando o Lénine empandeirou os czares», passou
a cumprir a tradição familiar: «Já o meu avô tinha uma oficina, muito perto do
hospital de Gaia. Era uma espécie de sociedade, com o meu pai e os meus tios.
Depois o meu pai transferiu-se para o Porto». Primeiro, como forjador da casa
Vasconcelos, «a mais antiga casa de molas do país, na Rua da Restauração»;
depois, como dono de uma oficina, na Rua do Bolhão.
«Na
Rua do Bolhão, n.º 130, nos Armazéns Delfim. Havia aí uns trinta e tal
armazéns, mecânicas, fundição. Isso ficava onde hoje está o Palácio do
Comércio, naquele miolo todo». Do outro lado da rua, estava estabelecido o seu
tio António, também com uma oficina. «Esse comprou os terrenos todos da Rua do
Bolhão à Rua do Bonjardim. Era o Pedrosa rico. O meu pai, o Pedrosa pobre».
Os
trabalhos de construção e conserto de molas para viaturas eram complementados
com a montagem de carroçarias para camionetas, «daquelas que não tinham grande
sabedoria». Entretanto, em 1939, com a edificação do Palácio do Comércio, houve
que mudar para a Rua de Camões, onde ainda hoje permanece a oficina. «O
proprietário disto era um tasqueiro, o Queirós. O meu pai comprou-lhe a casa e
para cá viemos».
Eram
os tempos «da guerra do Hitler», ele um jovem de 22 anos, atento à vida. «A
gente estava aqui à porta e às vezes via-as passar. Em cima, era a Micas da
Boa, uma casa cara, de mulheres casadas. Iam lá modelos e tal». À volta, outras
casas havia: a Portugal-Espanha, na Rua Alferes Malheiro. «O povo pôs-lhe essa
dedicatória. Não sei quem foi o inicial. A dona morava aqui pegado, uma pessoa
bem posta». De resto, «na rua passava agora um carro, daqui a bocado outro. Era
uma rua de movimento, mas era assim».
Nesses
anos abundava o negócio do volfrâmio e, com este, o trabalho de bigorna:
«Metiam quinhentos ou mil quilos de minério num carro e ele açapava. De maneira
que vinham cá reforçar as molas, levantar a carroçaria, para fintar a polícia».
Apesar
do muito trabalho, todos os sábados e domingos ia ao Rivoli, ao Coliseu: «Era
um bocado apaixonado por filmes de guerra». E também pela dança. «Cheguei a
frequentar a escola do falecido Matos Leite, na Rua do Breyner. Da valsa não
gostava muito, mas tangos e tal...».
Mesmo
armado de argumentos dançantes, não foi em salões que deslumbrou dona Emília, a
companheira de toda a vida. Foi na praia de Leça, ao volante de um Chevrolet!
«Comecei a ir para lá no mês de Agosto. O meu pai emprestava-me o carro e eu,
de tarde, levava as minhas irmãs. Pronto, já a conhecia, mas foi lá que
arranjei namoro».
«Demorou
dois anos, não chegou a dois anos», casaram: 1950. Mais tarde, Setembro de 1972,
o pai falece. E sempre «a forja, especialidade molas»: torno, esmeril, bigorna,
tenazes, martelo, marreta, macaco hidráulico, carvão. Trabalho duro «para dar
molejamento, para o carro não ser uma pedra».
Com
o volver dos anos, o serviço definhou. Agora, diz, o rendimento dá, quando dá,
para pagar ao velho ajudante Celestino: «Aparecem umas aguçaduras de
ferramentas e pouco mais. Às vezes lá vem um carrito, de longe em longe, para
dar força às molas, para reforçar». E mestre Pedrosa mais não faz, que a
freguesia mais não lhe exige: «Viaturas até cinco mil quilos, viessem elas!».