A árvore de pé descalço
Tronco dobrado sob o molho da carqueja,
Palmira de Sousa foi, durante quase meio século, a fantástica figuração de uma
árvore de pé descalço a caminhar no Porto, fustigada pela mais inclemente
exploração. 1
Texto de Augusto Baptista
«A primeira vez que fui presa por pé descalço,
muito chorei. Ia com o molho, não tive tempo de me calçar. Ele veio: "Está
autuada!" "Ó senhor guarda, queira-me perdoar"». Não perdoou.
Palmira de Sousa, carquejeira das Fontainhas, teve de desembolsar os vinte e
cinco tostões da multa de pé descalço que a lei estipulava, brutal penalização
para quem apurava esse exacto valor por um extenuante carreto de carqueja.
No jogo do gato e do rato, outras ocasiões houve
mais afortunadas: «Levávamos o calçado na mão. Se aparecia o polícia, botava-se
ao chão e, quando se chegava à beira dele, já íamos calçadas». Valiam outros
expedientes: peúgas desirmanadas enfiadas nos pés, sapatilhas com dedos de
fora, chinelos sem solaria, enfim, compromissos entre o meio descalças e o meio
calçadas, para escapar à multa e não atrapalhar a andadura: «Descalças,
fazia-se melhor o serviço».
Às tantas, os polícias também faziam vista grossa,
condoídos ou para evitar trabalho, aborrecimento, burocracia. Mas,
ciclicamente, erguiam-se marés persecutórias, limitantes da circulação das
carquejeiras, sobretudo pela Baixa, para não incomodar os olhos, o comércio.
Pintura de Abel Salazar, vulto clandestino a
esgueirar-se na bruma, a mirrar ao sol impiedoso do Verão, assombração
desmedida a assustar a noite, a chapinhar sob o peso da chuva no molho, Palmira
de Sousa carquejou os fornos, as
fornalhas, os «lumes caseiros» do Porto, durante quase cinquenta anos.
Nasceu na freguesia da Sé em 1912, com sete meses:
«Parecia um gatinho esfolado». Sobreviveu ao parto prematuro, às privações da
infância, adormecida pela «chucha de farrapo, com um bocado de pão e açúcar por
dentro», perto a boneca de trapos, «uma mona com olhos feitos a lápis». Na
escola, aprendeu a fugir: «Não queria estar presa». E cedo começou a andar com
a mãe na carqueja: «Aos 10 anos, já acartava molhinhos, para ajudar».
O pesadelo cresceu com a idade; lateral, o clamor
indignado de alguns sectores da cidade, face a uma «questão que tanto nos
deprime aos olhos dos estrangeiros». A Liga Portuguesa de Profilaxia Social, em
"O Problema das Carquejeiras do Porto", publicava no ano de 1951 os
esforços da instituição, desde 1928, para limpar «esta nódoa cívica», «fábrica
de tísicos», pela via de «outro emprego menos duro e menos aviltante».
Apesar dos diagnósticos, das propostas, das
correntes de opinião, do número relativamente pequeno de gente ocupada na
actividade (cerca de 100 pessoas, sobretudo mulheres, em 1938), as carquejeiras
só nos anos 60 se apagaram na paisagem urbana, quando o vegetal enfim se apagou
nas padarias, carvoarias, cerâmicas. «Passou tudo a maçarico, gás,
electricidade; agora, até para acender um fogareiro, é com jornais», lembra.
Finda a carqueja, «a gente teve depois de se deitar
ao que calhou, uma miséria: limpezas, acartar pão». Afinal, «a mesma cruz de
antes», o tempo da carqueja e da chamiça a transbordar nos rabelos rio abaixo,
desde a Lixa e Melres, até à "Praia dos Tesos". Nos três cais, cada
um com seu capataz, os tripulantes do barco «um à espadela e dois a remar, para
apanhar a maré, atracavam, botavam a carga».
Em cena entravam as carquejeiras, a emolhar, a
carregar para os armazéns, a levar a rama aos fregueses. E era a saga da
ascensão vertical, eterna, da Calçada da Corticeira, ziguezague doído no lajedo
de pedra larga, sob o fogo do molho, até às Fontainhas. Então, dealbava a
cidade.
Na lufa-lufa penou Palmira, «enganada aos 27 anos»,
casada pela igreja já com um filho na barriga, boda de casamento à altura
desses tempos: «Era Inverno, nem tinha que comer. Duas velhas deram-me 25
escudos e fui à Rua Escura comprar duas postas de bacalhau».
A gravidez cumpriu-a a trabalhar. Assim sete vezes,
que sete filhos teve do Albertino, também ele carquejeiro, falecido aos 30
anos. «Filhos bebézes», não tendo com quem ficar, levava-os no avental, «uma
mão a segurar as pontas, outra o molho». Exausta, parava, recatava-se às vezes,
para lhes dar de mamar.
Sobreviveram três, duas raparigas, um rapaz. Os
outros sumiram-se, como toda esta história vegetal feita de capatazes, rabelos,
pão de lenha, carvoeiros, fome, tuberculose, polícias, companheiros de
trabalho: o Arnaldo, o Ricardo, o Dulovim, o Cassiano, o Fura, a Laura, a irmã
do Herculano, a mãe da Valentina...
«Só resto eu e uma cunhada minha, a Margarida. Eu
com 90 anos, ela mais nova, terá 88». Apesar da idade, Palmira guarda na cabeça
memória viva, inapagável, dos tempos idos: um sulco, transversal e fundo, um
sulco que lhe marca a abóbada craniana, a calvária.
Nesta extensa depressão óssea, dorme a tensão demencial da corda que segurava a
frondosa copa sobre o seu frágil tronco, mulher-árvore de pé descalço a
caminhar no Porto, a caminhar no Porto, a caminhar no Porto.
1 Publicado na revista Notícias Magazine n.º 549, de
1 de Dezembro de 2002.