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repórter
25 septembre 2006

A democratização da cueca


Testemunhei um milagre. Exactamente: um milagre. A história conta-se em poucas linhas e passou-se há cerca de dois anos.
Ia eu na A1 para Coimbra, ao volante o meu amigo Fernando Mora Ramos, a rondar Albergaria-a-Velha, de repente o céu ruiu numa tormenta de granizo. No lençol de gelo, logo um carro se despista à nossa frente. Acudimos ao sinistro. Acto contínuo, outra viatura entra em derrapagem, bate nos rails, uma, outra, bate outra vez, serpenteia, bate de novo, guina, bate, até que pára.
Do "lugar do morto" salta uma senhora, trinta e tal anos, que de pé fica no meio da via, branca. Pasmada. Puxo-a para a berma. Trémula, vasculha a malinha e, aflita, perscruta o chão:
— O Buda, o meu Buda?!
No caos, na vertigem dos carros a passar, tolhi-lhe o propósito de entrar na auto-estrada em demanda do talismã. Numa momentânea acalmia, fui resgatar a divindade, esfacelada, estracinhada, a julgar pelos carros que a terão sobrepassado. Bem no centro do asfalto, pus a mão à pesada figurinha, que, riso anafado, me olhou em tons de vinho. Intacta, incólume. Milagre, só podia ser milagre.
Um milagre oriental com o mesmo fluido metafísico que pressinto no modo fulminante como o comércio das bugigangas se implantou no Porto. Rua Cimo de Vila, Rua Chã, Rua do Loureiro, Rua das Flores acordaram de repente numa explosão de cintilantes madrepérolas, lantejoulas, quinquilharia, novos comércios com letreiros em Chinês, montras e janelos afogados em odores de perfume Piramisu, em cores de soutien Mei Mei Wen, de carteiras Sanyun, de camisas Tengxu. E há gargantilhas, colares, joalharia Xing Zuan. E relógios Senlon, turbantes, óculos de sol, capas de telemóvel, jarrões, grilos cantantes, centros de mesa de fibra óptica.
E há cuecas.
Há cuecas com pompons amarelos, rendinha azul. Cuecas folhosas, nylon vermelho e roxo, fitinha de cetim. Cueca erótica para o povo, versão YongQuian, modelado Sy Ting Ming, sortido Qiao Sin. É a democratização do fio dental!

Enquanto isto, definha o velho comércio, morrem as lojas de ferramentas, de solas e cabedais, fazendas, parafusos, adubos e sementes. Fecham oficinas de aguçadura de cinzéis de pedreiro, enxadas, picaretas. 
E em Santa Catarina, onde floresce um comércio com salero, paira às vezes um som de acordeão, na rua um miúdo sentado rente à parede, a tocar. Por cima do instrumento, um cãozinho acrobático, na boca o cesto das esmolas. Pequenino. À medida do cão, do acordeonista, das esmolas, e destes tempos.



Augusto Baptista

                                                          Texto publicado em Notícias Magazine, 8 de Setembro de 2002

 

 

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