A democratização da cueca
Testemunhei um milagre. Exactamente: um milagre. A
história conta-se em poucas linhas e passou-se há cerca de dois anos.
Ia eu na A1 para Coimbra, ao volante o meu amigo
Fernando Mora Ramos, a rondar Albergaria-a-Velha, de repente o céu ruiu numa
tormenta de granizo.
Do "lugar do morto" salta uma senhora,
trinta e tal anos, que de pé fica no meio da via, branca. Pasmada. Puxo-a para
a berma. Trémula, vasculha a malinha e, aflita, perscruta o chão:
— O Buda, o meu Buda?!
No caos, na vertigem dos carros a passar, tolhi-lhe
o propósito de entrar na auto-estrada em demanda do talismã. Numa momentânea
acalmia, fui resgatar a divindade, esfacelada, estracinhada, a julgar pelos
carros que a terão sobrepassado. Bem no centro do asfalto, pus a mão à pesada
figurinha, que, riso anafado, me olhou em tons de vinho. Intacta, incólume.
Milagre, só podia ser milagre.
Um milagre oriental com o mesmo fluido metafísico
que pressinto no modo fulminante como o comércio das bugigangas se implantou no
Porto. Rua Cimo de Vila, Rua Chã, Rua do Loureiro, Rua das Flores acordaram de
repente numa explosão de cintilantes madrepérolas, lantejoulas, quinquilharia,
novos comércios com letreiros em Chinês, montras e janelos afogados em odores
de perfume Piramisu, em cores de soutien
Mei Mei Wen, de carteiras Sanyun, de camisas Tengxu. E há gargantilhas,
colares, joalharia Xing Zuan. E relógios Senlon, turbantes, óculos de sol,
capas de telemóvel, jarrões, grilos cantantes, centros de mesa de fibra óptica.
E há cuecas.
Há cuecas com pompons amarelos, rendinha azul.
Cuecas folhosas, nylon vermelho e
roxo, fitinha de cetim. Cueca erótica para o povo, versão YongQuian, modelado
Sy Ting Ming, sortido Qiao Sin. É a democratização do fio dental!
Enquanto isto, definha o velho comércio, morrem as
lojas de ferramentas, de solas e cabedais, fazendas, parafusos, adubos e
sementes. Fecham oficinas de aguçadura de cinzéis de pedreiro, enxadas,
picaretas.
E em Santa Catarina, onde floresce um comércio com
salero, paira às vezes um som de acordeão, na rua um miúdo sentado rente à
parede, a tocar. Por cima do instrumento, um cãozinho acrobático, na boca o
cesto das esmolas. Pequenino. À medida do cão, do acordeonista, das esmolas, e
destes tempos.
Augusto
Baptista
Texto
publicado em Notícias Magazine, 8 de Setembro de 2002