O Bessa da Sé
Como seu tio Belarmino Fragoso, o pugilista, a vida
de Carlos Bessa dava um filme. Nascido no Porto, freguesia da Sé, é barbeiro,
homem do fado, bombeiro, letrista, amante da fotografia, dragão, político. E
surpreendente. 1
Texto
de Augusto Baptista
Comprou um amaciador de cabelo, na farmácia. Com o
potente argumento, capaz de domar juba a um leão, munido de secador e
conhecimentos de corte à francesa, resolveu experimentar.
Uma tarde, o centro da cidade alvoroçou-se: da
barbearia saía um cliente aos gritos e, sob um halo perfumado de laca, o cabelo
muito esticado. Liso! Amigos, simples transeuntes, parou tudo. Uma roda viva,
estupefacta, sonora, cercou o fenómeno. Todos a quererem ver de perto, tocar o
milagre. Palpar a desfrisada carapinha.
Por detrás da vidraça, a espreitar o eco da sua
obra, o Bessa. Ufano.
O garbo fez-se pesadelo. Num repente a loja
regurgitava de gente ávida de se submeter à operação, presença colorida a
confrontar o estatuto branco do estabelecimento. E o patrão não tardou a pôr na
rua o herói, mais o amaciador, o secador, o corte à francesa. E a turba.
As peripécias capilares iriam continuar, o Bessa —
a cumprir serviço militar em S. Tomé, já pós-Abril — a desfrisar cabelos nos
bairros negros, depois de autorizado a trabalhar à civil pelo Alto Comissário,
seu cliente e conterrâneo, Pires Veloso.
Haveria de voltar à loja, a pedido do dono e da
clientela, «na condição dos pretos serem servidos, tal qual os brancos». E,
numa tarde escaldante de ajuste de contas pelo massacre de Batepá, «foi tudo
parar ao mar». Breve a independência, o regresso.
Era o tempo dos cravos. Na Sé, esperava-o a
barbearia, a família; a revolução, feita a seu modo: bailaricos, carros, vida à
rédea solta, desforra de um casamento aos 17 anos. Um dia, o "Grupo
Sé" — onde pontificavam o padre Leonel e o José Campos — convidou-o para
participar nas reuniões, integrar este corpo de reflexão, intervenção cívica e
política.
A pensar, a discutir problemas — droga, degradação,
ostracismo — o Bessa estabelece nexos com a sua meninice: as rusgas da polícia
no terreiro do Paço Episcopal, a apreensão da bola, «a multa de setenta e uma
coroa, por andarmos descalços»; o confisco das sandes de queijo aos colegas de
escola, meninos da Sé rica. Enfim, o trabalho na barbearia desde os 9 anos:
«Para aprender as barbas, ensaboa-se um balão de encher e, ao meter-lhe a
navalha, se rebentasse, comia-se logo. Os cabelos, era a trabalhar na perna.
Dias, meses, a aprender o traquejar da tesoura com o pente».
O empenhamento social leva a que diversas forças
políticas, da esquerda à direita, o desafiem a integrar os seus projectos.
Acaba por entrar, como independente, nas listas do PS à junta de freguesia.
Eleito para o pelouro do desporto e da cultura, em ruptura com o presidente,
não terminaria o mandato. Nas últimas autárquicas, concorre a presidente da
junta, nas listas do PSD. Perde, «à tangente».
Hoje com 50 anos, Carlos António Dias Bessa tem a
íntima convicção de que não irá ultrapassar os 60. Talvez esta ideia radique na
existência curta de uma figura marcante na sua vida: Belarmino, seu tio
Belarmino Fragoso, boxeur e herói do
filme de Fernando Lopes.
Quando em Lisboa, Bessa a tirar a especialidade de
rádio-telefonista no Batalhão de Caçadores 5, em Campolide, tio e sobrinho
encontravam-se nos Restauradores, almoçavam e, à noite, zarpavam para Almada.
Às vezes, encalhavam no Bairro Alto, Alfama, «vida nocturna a lembrar os fados
da Severa». Nesses ambientes, aprendeu a amar o tio, «um menino com um coração
bom, que levava os mendigos para casa, lhes dava banho e com eles comia à
mesa»; aprendeu a amar Lisboa, «o amanhecer, o pedrado das ruas, os sítios».
No auge do desvanecimento pela luz, pela gente, por
Lisboa, para que não o pensem rendido à mouraria, esclarece: «Numa balança, o
Porto tem toneladas; Lisboa, cem gramas. Isso basta para dizer que gosto de
Lisboa, que é bonita».
Entretanto, a Norte, a inquietação, a curiosidade,
incitam-no a ingressar, nos anos 80, na vida de bombeiro voluntário. Por esses
anos, decide abraçar a fotografia para fazer réplicas dos velhos enquadramentos
de Alvão e, por razões mais prosaicas, para ganhar a vida em casamentos,
baptizados.
A paixão pelo fado, pelo Futebol Clube do Porto,
pela Sé, levam-no à escrita de letras e poemas (que sonha ver em livro,
«publicado por uma editora, com rigor»), à edição de discos. E a ser locutor de
rádio, a integrar a actual Comissão de Toponímia, a erguer a voz nas
assembleias de freguesia.
Aspirante a presidente da junta — «para exercer o
mandato à maneira dos velhos regedores, com proximidade aos fregueses» — isso
impõe-lhe compromissos de gravata, dá-lhe amargos de boca: «Custa-me a
habituar. A gravata incomoda-me, enjoa-me, dá-me vómitos». Herança de pobre.
Como essoutra de todas as noites, ao deitar, tomar uma malga de café com sêmea,
a lembrar-lhe a meninice dura, a ganapada de pé descalço da Bainharia, dos
Pelames, da Rua Escura. A sua gente, o seu campo, que — surpreendentemente —
quer defender e representar, «como homem de direita».
1
Texto publicado na revista Notícias Magazine n.º 554, 5 de Janeiro de 2003.