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repórter
24 septembre 2006

O Bessa da Sé


Como seu tio Belarmino Fragoso, o pugilista, a vida de Carlos Bessa dava um filme. Nascido no Porto, freguesia da Sé, é barbeiro, homem do fado, bombeiro, letrista, amante da fotografia, dragão, político. E surpreendente.
1

 

Texto de Augusto Baptista

 

 
Comprou um amaciador de cabelo, na farmácia. Com o potente argumento, capaz de domar juba a um leão, munido de secador e conhecimentos de corte à francesa, resolveu experimentar.
Uma tarde, o centro da cidade alvoroçou-se: da barbearia saía um cliente aos gritos e, sob um halo perfumado de laca, o cabelo muito esticado. Liso! Amigos, simples transeuntes, parou tudo. Uma roda viva, estupefacta, sonora, cercou o fenómeno. Todos a quererem ver de perto, tocar o milagre. Palpar a desfrisada carapinha.
Por detrás da vidraça, a espreitar o eco da sua obra, o Bessa. Ufano.
O garbo fez-se pesadelo. Num repente a loja regurgitava de gente ávida de se submeter à operação, presença colorida a confrontar o estatuto branco do estabelecimento. E o patrão não tardou a pôr na rua o herói, mais o amaciador, o secador, o corte à francesa. E a turba.
As peripécias capilares iriam continuar, o Bessa — a cumprir serviço militar em S. Tomé, já pós-Abril — a desfrisar cabelos nos bairros negros, depois de autorizado a trabalhar à civil pelo Alto Comissário, seu cliente e conterrâneo, Pires Veloso.
Haveria de voltar à loja, a pedido do dono e da clientela, «na condição dos pretos serem servidos, tal qual os brancos». E, numa tarde escaldante de ajuste de contas pelo massacre de Batepá, «foi tudo parar ao mar». Breve a independência, o regresso.
Era o tempo dos cravos. Na Sé, esperava-o a barbearia, a família; a revolução, feita a seu modo: bailaricos, carros, vida à rédea solta, desforra de um casamento aos 17 anos. Um dia, o "Grupo Sé" — onde pontificavam o padre Leonel e o José Campos — convidou-o para participar nas reuniões, integrar este corpo de reflexão, intervenção cívica e política.
A pensar, a discutir problemas — droga, degradação, ostracismo — o Bessa estabelece nexos com a sua meninice: as rusgas da polícia no terreiro do Paço Episcopal, a apreensão da bola, «a multa de setenta e uma coroa, por andarmos descalços»; o confisco das sandes de queijo aos colegas de escola, meninos da Sé rica. Enfim, o trabalho na barbearia desde os 9 anos: «Para aprender as barbas, ensaboa-se um balão de encher e, ao meter-lhe a navalha, se rebentasse, comia-se logo. Os cabelos, era a trabalhar na perna. Dias, meses, a aprender o traquejar da tesoura com o pente».
O empenhamento social leva a que diversas forças políticas, da esquerda à direita, o desafiem a integrar os seus projectos. Acaba por entrar, como independente, nas listas do PS à junta de freguesia. Eleito para o pelouro do desporto e da cultura, em ruptura com o presidente, não terminaria o mandato. Nas últimas autárquicas, concorre a presidente da junta, nas listas do PSD. Perde, «à tangente».
Hoje com 50 anos, Carlos António Dias Bessa tem a íntima convicção de que não irá ultrapassar os 60. Talvez esta ideia radique na existência curta de uma figura marcante na sua vida: Belarmino, seu tio Belarmino Fragoso, boxeur e herói do filme de Fernando Lopes.
Quando em Lisboa, Bessa a tirar a especialidade de rádio-telefonista no Batalhão de Caçadores 5, em Campolide, tio e sobrinho encontravam-se nos Restauradores, almoçavam e, à noite, zarpavam para Almada. Às vezes, encalhavam no Bairro Alto, Alfama, «vida nocturna a lembrar os fados da Severa». Nesses ambientes, aprendeu a amar o tio, «um menino com um coração bom, que levava os mendigos para casa, lhes dava banho e com eles comia à mesa»; aprendeu a amar Lisboa, «o amanhecer, o pedrado das ruas, os sítios».
No auge do desvanecimento pela luz, pela gente, por Lisboa, para que não o pensem rendido à mouraria, esclarece: «Numa balança, o Porto tem toneladas; Lisboa, cem gramas. Isso basta para dizer que gosto de Lisboa, que é bonita».
Entretanto, a Norte, a inquietação, a curiosidade, incitam-no a ingressar, nos anos 80, na vida de bombeiro voluntário. Por esses anos, decide abraçar a fotografia para fazer réplicas dos velhos enquadramentos de Alvão e, por razões mais prosaicas, para ganhar a vida em casamentos, baptizados.
A paixão pelo fado, pelo Futebol Clube do Porto, pela Sé, levam-no à escrita de letras e poemas (que sonha ver em livro, «publicado por uma editora, com rigor»), à edição de discos. E a ser locutor de rádio, a integrar a actual Comissão de Toponímia, a erguer a voz nas assembleias de freguesia.
Aspirante a presidente da junta — «para exercer o mandato à maneira dos velhos regedores, com proximidade aos fregueses» — isso impõe-lhe compromissos de gravata, dá-lhe amargos de boca: «Custa-me a habituar. A gravata incomoda-me, enjoa-me, dá-me vómitos». Herança de pobre. Como essoutra de todas as noites, ao deitar, tomar uma malga de café com sêmea, a lembrar-lhe a meninice dura, a ganapada de pé descalço da Bainharia, dos Pelames, da Rua Escura. A sua gente, o seu campo, que — surpreendentemente — quer defender e representar, «como homem de direita».

 

 1 Texto publicado na revista Notícias Magazine n.º 554, 5 de Janeiro de 2003.

 

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